Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Com paixão, Jaime Lerner se tornou um dos maiores urbanistas do mundo

Arquiteto-gestor fez de Curitiba referência internacional

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Em 2017, a revista americana Planetizen, especializada planejamento urbano, colocou Jaime Lerner, morto nesta quinta (27), em segundo lugar numa lista com os urbanistas mais influentes da história, atrás apenas de Jane Jacobs e à frente de nomes como Le Corbusier, Jan Gehl ou Ebenezer Howard. A indicação destacava seu legado de planejamento urbano, transporte, programas sociais e ambientais.

Não parece ter sido exagero. Desde a primeira vez que foi prefeito (foram três), Lerner apontou para um caminho de transformação urbana que influenciou centenas de cidade pelo mundo e transformou Curitiba numa referência nacional e internacional.

O sistema de transporte baseado na priorização e vias exclusivas para os ônibus tem um quê de metrô, mas a custo muito mais baixo, e foi a base para o adensamento da cidade desde o final da década de 1960.

Naquela época, Curitiba tinha aproximadamente 450 mil habitantes, mais ou menos o tamanho de Mogi das Cruzes hoje. De lá para cá, a cidade que ganhou fama pela qualidade de vida viu explodir a população, mas ainda é possível perceber nela a estrutura que permitiu que o crescimento não fosse tão caótico como em outras cidades brasileiras: o planejamento do transporte público a partir do BRT, os parques maravilhosos, como o Barigui, bairros arborizados, as calçadas generosas, a preocupação com a vitalidade do centro e a vida pública.

Lerner amava Curitiba, mas amava as cidades. Seus livros, suas palestras, suas ações parecem conter sempre a preocupação de balancear as escalas: do local ao global, sem perder de vista os detalhes que fazem a diferença na vida cotidiana.

Assim, apesar de conhecer o mundo todo, gostava de contar em público como era a rua de sua infância. Narrou inúmeras vezes a história do motorista de ônibus que pensou numa solução caseira para organizar a parada na “estação-tubo”, um dos símbolos das reformas de Curitiba.

Elogiava a diversidade mas não se deslumbrava pelas palavras de ordem. Para ele, o uso misto era qualidade de vida. Sua solução de mobilidade urbana exportada para todo o mundo e tem gente que sai encantada com o que vê em Bogotá, sem saber que o modelo veio de Curitiba.

O ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, porém, sempre fez questão de dizer que foi de Lerner a inspiração para o Transmilênio, o premiado sistema de transportes. O modelo de expansão urbana acompanhando as linhas de transporte tem inspirado cidades pelo mundo, inclusive os princípios do Plano Diretor de São Paulo.

Acreditava na simplicidade, mas não abria mão da qualidade nem da velocidade da execução. A obra tem que ser boa e tem que ser rápida. Nessa linha, ele transformou um conceito –a acupuntura urbana, que gerou um livro de sucesso– em um poderoso modelo de transformação urbana. A rua 24 horas, por exemplo, é um projeto relativamente simples, mas de efeito transformador evidente para quem anda de madrugada na cidade.

Ele entendia o valor do carro (e até esteve envolvido com o planejamento de um carrinho que ocuparia menos espaço nas ruas), mas advogava que a cidade boa é aquela que dá mais valor ao transporte público. E sustentava que o uso indiscriminado do carro estava com os dias contados. A rua 15 de Novembro, a ‘"rua das Flores", em Curitiba, uma das primeiras, senão a primeira rua de pedestres do Brasil ainda hoje é um exemplo de vitalidade urbana, com mobiliário desenvolvido pela sua equipe e usado até hoje.

Do ponto de vista de replicação de boas ideias, talvez a experiência mais interessante tenha sido a concepção do órgão de planejamento da cidade, o Ippuc ( Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba), da qual Lerner participou, que sobreviveu a inúmeras gestões municipais, com foco no ordenamento técnico.

Tive a oportunidade de visitar seus escritórios uma vez e era evidente como a independência era ressaltada pelos urbanistas como garantia de que os projetos não fossem alterados a cada mudança de gestão.

Poucas pessoas parecem escapar ilesas da experiência da gestão pública, e o arquiteto-gestor teve que arcar com processos ligados ao seu período como governador do Paraná (duas vezes). Depois, manteve o funcionamento de seu escritório, com projetos para várias cidades brasileiras e internacionais.

Seu maior legado, porém, foi o de transformar em ações práticas o encantamento com a vida urbana e a rua. Parece ser uma inspiração poderosa para qualquer candidato a prefeito, de qualquer cidade.

Em 2016, em um lançamento de documentário sobre sua obra, moderei uma conversa com Jaime Lerner e pude constatar seu carisma ao vivo. Depois do evento, pessoas da plateia subiram ao palco, tiraram selfies, pediram autógrafo, ansiosas por uma palavra e uma atenção, repetindo o que audiências fazem pelo mundo afora.

Deu para entender o porquê desse frisson todo. A “produção de cidades” não pode ser um ato mecânico. Sem paixão, as cidades são ruas, prédios e concreto. Com paixão, como a que Lerner professou e praticou, talvez abriguem vidas mais interessantes e plenas.

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