Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Plano Diretor ao nível dos olhos

É possível encontrar pessoas, passar por lojinhas ou estaremos entre prédios que não oferecem mais do que um muro?

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Planos Diretores podem funcionar ou não. Todos os que são implantados, porém, deixam alguma marca na cidade. Em Curitiba, é possível ler na capital de hoje as intenções do plano do final da década de 1960: quanto mais perto dos eixos dos ônibus, mais altos os prédios. Em São Paulo, também é possível observar os efeitos de outro plano, mais velhinho e mais controverso: o Plano de Avenidas. Desde a década de 1930, ele fez a cidade se espalhar a partir de vias como a 23 de maio, Nove de Julho e as marginais. A desigualdade atual tem ecos desse plano, com infraestrutura melhor nas regiões centrais e precariedade nas periferias.

Por isso tudo, não dá para ignorar a conversa sobre a revisão do Plano Diretor Estratégico, de 2014. O assunto parece chato —e é mesmo—, mas vai deixar marcas na cidade e nas nossas vidas, então, é melhor encará-lo de frente.

Prevista em lei, a revisão deveria acontecer neste ano. Um movimento chamado Frente São Paulo pela Vida, com centenas de organizações, como o Instituto de Arquitetos do Brasil, pleiteia o adiamento por conta da pandemia. A prefeitura diz que é possível manter o calendário de participação popular num misto de reuniões presenciais e à distância.

Avenida Nove de Julho vista de uma calçada em direção a outra, com um ônibus passando sentido Jardins e um prédio ao fundo; a foto foi tirada na calçada do lado sentido centro
Ponto de ônibus na avenida Nove de Julho, em São Paulo; via ajudou a cidade a se espalhar para regiões fora do centro - Gabriel Cabral - 11.out.2019/Folhapress

Se for discutido agora ou no ano que vem, talvez não faça muita diferença. Afinal, mesmo que se mexa em alguns pontos, é difícil imaginar que se mude a direção dos seus princípios de longo prazo, exaustivamente discutidos na época: o adensamento ao longo dos eixos de transporte, o desenvolvimento de novas centralidades e a requalificação da região central.

O que falta, portanto, é um diagnóstico. Seis anos depois de sua promulgação, o que mudou? A cidade está menos desigual? Foram criados empregos perto das moradias em bairros carentes? Melhoramos o centro para atrair mais moradores? Enquanto a prefeitura não prepara o seu diagnóstico, é possível apontar algumas lacunas, tanto no plano como na gestão do dia a dia.

A primeira é a gestão da complexidade. O Plano Diretor tem sete princípios, 14 diretrizes e 17 objetivos, o que torna difícil entender as prioridades, mesmo para quem se dispõe a mergulhar em suas 248 páginas. Num momento em que a pandemia escancara as precariedades, talvez fosse o caso de deixar isso ainda mais explícito e priorizar o combate à desigualdade. Se a desigualdade não for combatida, todos os princípios parecem não ficar de pé.

Sofremos também com a falta dos Planos de Bairro. Em 2014, pulamos essa etapa e passamos diretamente ao zoneamento, ignorando as particularidades de relevo, segurança, emprego e moradia de cada região. Um exemplo: a Vila Madalena tem uma estação de metrô e pode, portanto, receber novas construções. O problema é que, quando se esquecem das particularidades da região, os novos gigantes se acomodam sem limites, ignorando nascentes, colinas, vistas, e perdendo a chance de uma densidade mais equilibrada e sustentável.

Parte da dificuldade em atingir os objetivos do plano é que existem áreas da cidade que são regidas por legislação específica: as Operações Urbanas e os PIUs (Planos de Intervenções Urbanas). São planos que têm gestão própria, com grupos gestores e legislação específica. É difícil imaginar que todos os planos em andamento hoje possam ser tocados pelas equipes atuais, o que faz com que regiões prioritárias, como o centro, estejam esperando por projetos que ainda não estão nem prontos.

Por fim, temos a questão da qualidade dos espaços públicos. O plano já incentivou o adensamento ao longo dos eixos de transporte em quase todos os bairros e tem na região da avenida Rebouças seu exemplo mais contundente. Ali é possível ver a fila de prédios altíssimos em construção, que estão tomando o lugar de casinhas e predinhos. Em bairros periféricos, o mesmo padrão começa a se repetir.

Como será a vida nessas áreas adensadas? Será que a cidade melhorou ou piorou no nível do chão? Os instrumentos como "fruição do térreo", "uso misto" e "fachadas livres" estão sendo suficientes para trazer melhorias para as calçadas? É possível encontrar pessoas, passar por lojinhas, comprar um remédio na farmácia, levar uma criança à escola e esperar pelo ônibus em segurança? Ou, ao contrário, estaremos vivendo entre prédios que ocupam meio quarteirão e que não oferecem mais do que um muro ou uma parede de garagens, retirando vida da rua em vez de incentivá-la?

Estamos num ponto de inflexão. As pessoas estão buscando a cidade de volta. Ao mesmo tempo, a pandemia está destruindo negócios, mudando padrões de uso da cidade e, principalmente, desvelando as desigualdades sociais. O Plano Diretor é essencial, mas, além dele, vai ser preciso ver atuação mais firme e veloz do poder público para combater essas desigualdades, descentralizando decisões, ouvindo a sociedade civil e ajudando a desenhar uma cidade que permita o florescimento do que ela tem de melhor: a energia vital das pessoas.

Talvez seja justamente a maneira como uma cidade enfrenta seus problemas que faz sua grandeza.

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