Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Pacaembu, o estádio mais bonito do mundo, em reforma

Demolição do tobogã marca início das obras do novo projeto e incentiva a acompanhar o funcionamento da concessão do estádio

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Ontem, começou a demolição do tobogã do estádio do Pacaembu.

Para minha surpresa muitas pessoas começaram a comentar nostalgicamente sobre a perda desse pedaço do estádio que eu sempre achara feio de ver e desconfortável de sentar. O bruto pedaço de concreto, construído no comecinho da década de 1970 substituiu a concha acústica, ela sim linda, que fechava com o charme do art-decô o espaço do vale desde a inauguração.

Mas dá para entender a nostalgia. Afinal, o valor das arquibancadas de um estádio de futebol não se mede só pela sua beleza, mas pelas memórias que a gente tem ali. E como o Pacaembu traz memórias!

Início das obras no Estádio do Pacaembu. Máquinas iniciam a demolição do Tobogã
Máquinas iniciam demolição do tobogã no estádio do Pacaembu, nesta terça-feira (29) - Rubens Cavallari/Folhapress

Foi ao Pacaembu que meu pai me levou pela primeira vez a um jogo, em 1970, um São Paulo e Santos, numa época em que as torcidas não ficavam separadas.

Com o estádio lotado, acabamos ficando de pé diante do alambrado, e mesmo torcendo para o São Paulo, tinha a expectativa de ver o Pelé de perto. Lá pelo meio do jogo, alguém errou o chute e a bola veio mansinha parar na minha frente. Pelé fez menção de bater o lateral, mas para decepção da turma do alambrado, quem veio cobrar foi um jogador chamado Picolé. Não lembro nem do placar, mas consigo rever com detalhes aquela corrida plástica do jovem coadjuvante, que ganhou lugar de honra na minha memória e um cumprimento de um torcedor ao meu lado: “Vai pra casa, Picolé!”.

Décadas depois, foi a vez de levar meus filhos ao estádio. Ali vimos o São Paulo perder e ganhar, ali vimos a Marta dar show num jogo contra o Canadá, ali fomos ao maravilhoso Museu do Futebol, instalado bem embaixo das arquibancadas em 2008. Ainda vi o grande tenista Thomaz Koch jogar no pequeno ginásio de tênis e pisei no gramado encharcado num show antológico dos Rolling Stones.

A proximidade com os jogadores, a experiência única de sentar nas cadeiras assentadas nas encostas do vale, tudo contribui para o Pacaembu ser o estádio mais aconchegante que eu conheço. E um dos mais bonitos do mundo, por que não?

Inaugurado em 1940, o projeto aproveitou magistralmente o vão em meio a duas colinas e estacionou seus enormes portões com dignidade em frente ao vale. Foi a casa de jogos de todos os times de São Paulo, palco de 6 jogos da Copa do Mundo de 1950, dos Jogos Panamericanos de 1963, de shows da Tina Turner, Paul McCartney e Stones na década de 1980.

Nos últimos anos, andava meio acabrunhado, com menos jogos de futebol, shows proibidos para não atrapalhar a vizinhança e com toda aquela estrutura subutilizada, com exceção do Museu do Futebol, um dos mais visitados de São Paulo, que não fará parte da concessão.

Bem, em 2020, a gestão do estádio foi concedida à iniciativa privada por R$ 111 milhões. O modelo é ainda razoavelmente novo no Brasil e gerou muita discussão. Em princípio, a concessão de um bem público deveria acontecer apenas quando o Estado não tem recursos para garantir um fluxo de investimentos e quando o resultado final seja melhor para a cidade. Talvez o Pacaembu seja exatamente o caso.

Temos a chance de ter investimentos necessários num patrimônio invejável –além do estádio, há o ginásio poliesportivo e o de tênis, a quadra de futsal e vôlei, três pistas de cooper, duas salas de ginástica e uma ótima piscina olímpica. O projeto é uma novidade, que mistura espaços de eventos, cafés, salas de coworking, lojas e até uma arena de games, além da promessa de manter o gramado impecável para os jogos de futebol.

Por que então, há tantas dúvidas sobre o modelo de concessão? Isso tem a ver com nosso histórico de modelos de governança ineficientes que geram insegurança jurídica e terminam sendo contestados ou que deixam entes privados agirem sem nenhuma forma de controle, como alguns legados da Olimpíada do Rio demonstraram.

A concessão é longa. O presidente da Allegra, Eduardo Barella pratica um discurso de preservação, qualidade arquitetônica e respeito ao entorno, mas, em 35 anos, muita coisa pode dar errado. A Prefeitura sustenta que o contrato tem cláusulas que permitem intervenções caso a concessionária não cumpra certas condições, como o acesso gratuito às piscinas ou a fruição pública da esplanada que vai ligar as ruas que circundam o Pacaembu.

Finalmente, há também dúvidas sobre o próprio projeto, que transforma o velho estádio em algo que ninguém tem certeza do que será, como espaços multiuso em outras cidades do mundo. Vai ser necessário acompanhar as mudanças, para garantir que o interesse público caminhe ao lado do privado, desde a ligação com a rua até o uso das instalações.

Em respeito ao que já se gritou e sofreu nesse lugar, vale vaiar se a bola for chutada para fora, mas também vale torcer muito para dar certo e termos um lugar que, além de dar dignidade ao passado, possa se tornar um ponto de encontro digno de uma cidade contemporânea.

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