Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Mauro Calliari

O balé das calçadas

O maior clássico da história do urbanismo, "Morte e Vida das Grandes Cidades", de Jane Jacobs, completa 60 anos e ainda ajuda a explicar as idiossincrasias de nossas cidades

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Da varanda do meu apartamento, vejo pessoas de legging e shorts trotando na calçada. Já sei que são 7 da noite, a hora em que os alunos do fitness deixam a academia e saem para correr. Assim como eles, ao longo do dia surgem públicos variados, cada um com seu horário, cada um ocupando a calçada de seu jeito. Ao abrir a papelaria logo cedo, o funcionário dá uma varridinha na calçada. No final da manhã, chegam os simpaticíssimos donos do café da esquina, que começam a preparar o almoço dos trabalhadores dos escritórios. Esses surgem em bandos, com seus crachás, suas máscaras e suas conversas. De tarde, chegam os carroceiros à central de reciclagem, trazendo a coleta do dia. Ao anoitecer, todos os donos de cachorros descem para uma voltinha. De noite, estacionam os jovens que desafiam a pandemia na balada do baixo Pinheiros. De madrugada, irrompe o caminhão do lixo e os coletores-corredores recolhem tudo o que a cidade joga fora.

A cena, óbvio, remete à linda expressão de Jane Jacobs – “o balé das calçadas”. Junto com outras pérolas, como “os olhos da rua” ou “capital social”, elas estão no livro "Morte e vida das grandes cidades", publicado em 1961, há exatos 60 anos.​

Calçada com mesas de bar e pessoas sentadas
Pessoas sentadas em uma calçada - Karime Xavier - 7.set.20 / Folhapress

O livro é um daqueles marcos que mudam o modo de pensar de uma geração. A vitalidade depende de diversidade, a mistura de prédios novos e antigos é benéfica, quarteirões muito grandes desestimulam os pedestres, praças só funcionam quando estão imersas na cidade. Jane Jacobs conseguiu juntar um raciocínio refinado a uma alta dose de capacidade de observação da vida cotidiana. O lirismo de algumas cenas não ofusca a crítica contundente aos problemas das cidades construídas sob cânones modernistas: a separação de funções, a onipresença do automóvel e os grandes projetos que destroem casas antigas em nome da modernização.

A diversidade de pessoas e de usos no quarteirão de Jacobs no Greenwich Village na década de 1960 e a do meu em 2021 ajuda a entender a vitalidade de uma região. Gente diferente fazendo atividades diferentes garante movimento durante todo o dia, 0 que aumenta a segurança e a urbanidade. Parece simples mas pense em tantas partes da cidade que sofrem com falta de diversidade. Na Berrini ou no Centro de São Paulo, se trabalha e não se mora. Nos bairros Jardim ou em Alphaville, se mora mas não se trabalha. Em alguns bairros, não se vai a pé nem até a padaria.

Jane Jacobs não foi uma visionária solitária. Seu livro foi lançado quando já surgiam sinais de insatisfação nas grandes cidades europeias e americanas. Mas foi pioneira em estruturar a crítica ao urbanismo destrutivo. Sua batalha contra Robert Moses, o poderoso coordenador de projetos urbanos em Nova York, é um dos capítulos mais bonitos do ativismo pois mistura a pensadora racional à mulher que se emocionava diante da Washington Square. Junto com outras pessoas, muitas delas também mães (motivo de deboche pelos seus opositores), conseguiu impedir a construção da Lower Manhattan Expressway que iria cortar parte do bairro.

E no Brasil? Bem, aqui, o movimento de defesa do ambiente urbano só começou a ganhar força 30 ou 40 anos depois, quando nossas cidades já tinham sequelas graves com o crescimento desordenado, a perda de importância dos centros, a invasão das grandes avenidas e o reinado do zoneamento funcional. Basta pensar que, na década de 70, ou seja, 10 anos depois da publicação do maior libelo contra as vias expressas, o Rio de Janeiro construía a Perimetral e São Paulo o Minhocão. Uma já foi posta abaixo, o outro ainda continua lá, como uma lembrança de nossos Robert Moses.

Sintoma do nosso atraso é o fato de o livro mais importante da história do urbanismo só ter sido traduzido para o português no ano 2000. Numa resenha publicada na época, a professora da FAU USP Regina Meyer apontava o desafio das cidades brasileiras: a retomada da urbanidade. Muito mudou de lá para cá. Nas duas últimas décadas, implantamos o Estatuto da Cidade e assistimos a uma retomada evidente do interesse pelo espaço público. Hoje, temas antes considerados pouco sérios estão sendo discutidos nos conselhos, na universidade e nas prefeituras – a urbanidade, o caminhar, a importância das trocas comerciais e dos encontros – mas as nossas ações ainda são tímidas e as cidades continuam sob risco.

Conta-se que, quando foi prefeito de São Paulo, José Serra, deu uma cópia para cada secretário municipal. Se leram, não se sabe, mas bem que deviam, assim como todos os que vieram depois.

Finalmente, uma palavra sobre o ‘método’ de análise de Jane Jacobs. Como alguém que não tem diploma de arquiteto ou urbanista conseguiu reunir tantos insights? A resposta talvez esteja num texto anterior, de 1958, publicado na revista Fortune. Nele, Jacobs dá a receita para conhecer as cidades: “You´ve got to go out and walk.” Saia e ande.

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