Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Descrição de chapéu Mobilidade Coronavírus

A descoberta da cidade pelos adolescentes

A pandemia pode ter enfraquecido a ligação de jovens com a cidade

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Há 35 anos, era lançado o filme "Curtindo a Vida Adoidado". É a história de Ferris Bueller, um adolescente de um subúrbio rico que cabula aula e arrasta seu melhor amigo e a namorada para Chicago. Eles almoçam num restaurante chique, assistem a um jogo de beisebol, se fascinam com os quadros do Arts Institute of Chicago e ainda se metem numa parada de rua. É uma comédia despretensiosa, mas marcou época entre os jovens. O filme faz pensar na descoberta da cidade pelos adolescentes. Para os americanos dos subúrbios protegidos e insípidos, a cidade real da década de 1980, misteriosa e perigosa, era um enigma a ser descoberto e enfrentado.

Cena do filme "Curtindo a Vida Adoidado"
Cena do filme "Curtindo a Vida Adoidado" - Divulgação

Na São Paulo de hoje, jovens de classe média também saem dos condomínios e vão atrás dos prazeres e surpresas da cidade. Lá pelos 16 ou 17 anos, meninos e meninas começam naturalmente a descobrir a cidade sozinhos em busca de seus interesses. Alguns buscam os museus, outros os estádios de futebol, shows, bares, feiras, a Galeria do Rock, a Bienal, o Masp, os SESCs, o Centro Cultural São Paulo e os parques. É a hora em que tomam posse da Paulista e começam a se aventurar pela praça Roosevelt e os calçadões do centro. Outros saem no Carnaval de rua e descobrem lugares que nunca viram.

Nesse processo, a cada saída, os jovens vão juntando os pedaços para formar a sua imagem da cidade. A cada saída, a cada metrô, a cada ônibus, a cada caminhada, a imagem vai ficando mais nítida.

Tenho dado algumas palestras sobre a história de São Paulo para alunos de universidades e do ensino médio e é perceptível como a pandemia interrompeu essas descobertas. Alunos de classe média passaram grande parte dos últimos dois anos em casa, com aulas virtuais, vendo amigos pelo Zoom e convivendo mais do que seria o normal com os pais. A experiência da cidade faz falta. Não apenas por conhecer o lugar onde moramos, mas por começar a conviver com aquilo que São Paulo tem de mais especial: gente. Gente diferente, de outras origens, outras cores, outros interesses, seja num ônibus, seja num show ou numa sala de aula. A convivência civilizada com a diversidade é coisa que se aprende através de tentativa e erro. O resultado, segundo o sociólogo americano Richard Sennett é justamente a urbanidade –a atitude que permite a convivência entre diferentes. O oposto da urbanidade, para ele, é uma doença –o narcisismo– em que tudo gira em torno de si mesmo.

O estudo virtual, o trabalho virtual e a convivência virtual suprimiram parte dessa experiência de aprendizagem para o convívio. A saída ao mundo real envolve preparação, ansiedade e decisões. Escolher o itinerário, andar até um metrô, decidir onde descer, especular sobre a segurança de uma rua antes de encará-la, descobrir uma surpresa numa vitrine, parar para tomar um sorvete, desviar da multidão. Tudo isso faz parte do processo de negociar e aprender a conviver com gente que nunca vimos antes.

Vai ser preciso um tempo para os jovens voltarem a se conectar com a totalidade da experiência urbana. A escola pode ajudar. Antes da pandemia, era comum ver grupos de escolares no centro, ao redor do Páteo do Colégio, olhando espantados para os prédios antigos e os moradores de rua. Cada saída dessas desperta a curiosidade pela cidade. Quando eu tinha oito anos, a escola nos mandou para uma volta no quarteirão munidos de uma prancheta de madeira para mapear a vizinhança. Ainda lembro de escrever no papel com cuidado as atividades de cada imóvel que encontrava: "escola, casa, casa, bar, casa, mercearia, casa, casa, loja de material de construção, casa, casa, casa". Depois de cinquenta anos, passei pelo local e fiquei consternado em constatar a mudança. Fosse hoje o exercício, teria escrito apenas: "escola abandonada, prédio gigante que ocupou o lugar de todos os outros imóveis". A cidade mudou, mas a curiosidade ficou.

As escolas não precisam de mais matérias obrigatórias, mas a cidade é um tema interdisciplinar que poderia ser mais explorado. Dá para pensar em geografia e literatura, dá para discutir relações interpessoais, dá para usar matemática para discutir a desigualdade, e dá, claro, para pensar na história de quem veio antes de nós. Saber que a praça da República já hospedou touradas quando se chamava largo dos Curros. Descobrir as centenas de rios escondidos e desenhar o curso original do Pinheiros e Tietê antes da retificação. Entender por que o número de pessoas morando em favelas explodiu na década de 1970. Vislumbrar o charme da cidade sem o Minhocão e os viadutos que cobriram o parque Dom Pedro. Acompanhar os trajetos de Oswald de Andrade pelo centro antes de se tornar modernista. Capturar a forma do triângulo histórico e constatar que a travessia do Anhangabaú tinha um pedágio.

A cidade faz mais sentido para os estudantes se vier acompanhada de seus cheiros, seus barulhos e de seus encontros. Isso só vai acontecer fora da telinha do computador.

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