Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Descrição de chapéu trânsito

Cadeirantes

Entre a boa vontade da legislação e a realidade das pessoas com deficiência de locomoção, há um degrau a vencer

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Como é se locomover em cadeira de rodas em São Paulo? Para entender um pouco quais são esses desafios, conversei com alguns amigos e conhecidos cadeirantes —Tuca Munhoz, Mila Guedes, Sandra Ramalhoso, Eliani Prado e Silvana Cambiaghi. Todos têm atuação profissional, mas também trabalham em prol da pessoa com deficiência. Eles me contaram suas histórias, fizeram propostas e ajudaram a olhar para coisas que parecem invisíveis no dia a dia da cidade.

A primeira conclusão das conversas é que sair de casa demanda muita força de vontade e planejamento. Como qualquer pessoa, eles trabalham, vão ao supermercado, encontram amigos. Mas tudo é mais difícil, do elevador ao ônibus. Para chegar na hora, os cadeirantes são obrigados a sair de casa uma hora mais cedo que os outros.

Os piores lugares são onde o relevo é mais íngreme. Na Vila Madalena, por exemplo, sobram degraus e entradas de garagem —e mesas de bares. Nos bairros de periferia, as calçadas são ainda mais estreitas e as escadarias se multiplicam. Favelas são um desafio ainda mais difícil; há pessoas com deficiência que precisam ser carregadas para sair de casa.

Bruno Mahfuz é cadeirante desde 2001 e dono da empresa Guia de Rodas, que avalia a acessibilidade de locais públicos
Bruno Mahfuz é cadeirante desde 2001 e dono da empresa Guia de Rodas, que avalia a acessibilidade de locais públicos - Rubens Cavallari - 26.nov.21/Folhapress

As melhores calçadas estão na Paulista (mas não necessariamente nas suas travessas!), em alguns lugares do Centro ou ao redor de algumas estações, como Pinheiros. São lugares que têm esquinas rebaixadas, sinalização adequada e um pouco mais de espaço.

O transporte é um problema em si. As estações da CPTM são pouco acessíveis. As do Metrô da linha amarela e verde são melhores, mas muitas vezes os elevadores ficam isolados do movimento ou quebram. Aí, a coisa aperta, porque uma cadeira pode pesar mais de 90 kg e vai ser preciso contar com a boa vontade e a força dos braços do pessoal do metrô. E como diz uma das pessoas com quem conversei: "a gente não quer ser carregado, quer só usar o serviço". De ônibus, é preciso esperar que tudo funcione quando o cobrador sair do seu lugar para acionar a alavanca para abrir a rampa ou o elevador. Se dois cadeirantes estão juntos, um deles vai ter que ir no próximo ônibus.

Meus amigos cadeirantes contam coisas boas sobre seus passeios, mas também têm histórias de perrengues. Mila já foi atropelada porque foi obrigada a andar na rua. Eliani foi deixada de ônibus num lugar ermo sem acessibilidade porque o motorista pulou um ponto. Tuca foi ao banheiro acessível em frente ao Pacaembu mas ele estava localizado... num lugar inacessível. Sandra estava num ônibus que pegou fogo e ela teve que ser carregada no braço de outros passageiros, com cadeira e tudo.

Bem, o que fazer para melhorar isso?

Intensificar o uso dos dados

Os dados do Censo e algumas pesquisas independentes, como o Inquérito de Saúde da Cidade de São Paulo, podem ser mais úteis.

São Paulo tem aproximadamente 680 mil pessoas com alguma deficiência grave, visual, auditiva ou motora. E 1,9% da população, ou quase 220 mil pessoas, têm dificuldade permanente para caminhar e subir escadas. Onde exatamente estão as pessoas que não conseguem sair de casa? Onde alocar os investimentos para suprir a carência de infraestrutura?

Aplicar a lei e melhorar a fiscalização

Muita coisa melhorou nos últimos anos em relação à acessibilidade. Desde 1996 existe em São Paulo uma Comissão Permanente de Acessibilidade e desde 2005 a Secretaria da Pessoa com Deficiência. A legislação também mudou muito com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Calçadas melhoraram um pouco e a instalação de rampas nas esquinas é um divisor de águas. As novas ciclovias ajudam em casos excepcionais. Há normas de acessibilidade para o transporte público, para as calçadas e para os imóveis. Se essas leis fossem todas cumpridas, a vida de quem circula em cadeira de rodas já estaria bem melhor.

Tratar das calçadas separadamente

As calçadas brasileiras ficaram esquecidas por décadas com a prioridade dada aos carros. Há iniciativas em São Paulo, mas ainda sem a abrangência necessária. Cidades inclusivas no mundo inteiro podem inspirar São Paulo com duas ideias: a primeira é ter um órgão que centralize as ações sobre as calçadas. A segunda é atribuir à Prefeitura a responsabilidade sobre as calçadas. Se o asfalto das ruas é pago pela Prefeitura, por que não o concreto das calçadas?

Na estação Aracaré da CPTM, na linha 12, em Itaquaquecetuba, no embarque e desembarque o desnível do vagão para a plataforma é de mais de 30 cm de altura e 15 cm de distância; não há elevador ou qualquer forma de acessibilidade
Na estação Aracaré da CPTM, na linha 12, em Itaquaquecetuba, no embarque e desembarque o desnível do vagão para a plataforma é de mais de 30 cm de altura e 15 cm de distância; não há elevador ou qualquer forma de acessibilidade - Rivaldo Gomes - 19.nov.20/Folhapress

O transporte público

A Prefeitura informa que toda a frota já é acessível. Cabe coordenar a integração com o resto da Grande São Paulo e melhorar a conexão do transporte público com os bairros, desde o acesso às estações até o conforto interno nos ônibus e trens, passando pela melhoria de informações sobre horários.

A Prefeitura também tem um serviço interessante chamado Atende, que busca e leva pessoas com deficiência. São 7.000 por mês, o que mostra que elas estão dependendo mesmo do automóvel particular ou táxi (pouquíssimos), do transporte público (a maior parte) enquanto alguns não conseguem nem sair de casa (ninguém sabe quantos são).

Foco na periferia

A periferia de São Paulo exige tratamento especial. É preciso começar pelos trajetos mais relevantes, a escola, o supermercado, a farmácia, o posto de saúde —e o acesso ao transporte.

Uma cidade melhor para as pessoas com deficiência é uma cidade melhor para todos. Andamos muito na legislação e ações nos últimos anos, mas ainda falta um degrau enorme para ser suplantado na questão das calçadas e do transporte. E degraus são, como sabemos, barreiras imensas à cidadania.

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