Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Mauro Calliari
Descrição de chapéu quadrinhos

A São Paulo de Angeli

A força da literatura urbana e paulistana nos quadrinhos do cartunista que anuncia sua aposentadoria

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O cartunista Angeli não vai mais publicar charges e quadrinhos. Está com afasia, uma condição degenerativa que afeta a capacidade de linguagem. Vai ser estranho não topar com as histórias iconoclastas e surpreendentes desse que é um dos responsáveis pela literatura mais urbana que tivemos —os quadrinhos.

Nos anos 1980, junto com Laerte, Glauco, Paulo Caruso e Luis Gê, Angeli foi um dos artistas que captaram as contradições do país e da cidade que emergiam com o fim do regime militar. A nova urbanidade, a diversidade das ruas, a desigualdade e as mudanças de comportamento, tudo parece estar retratado nos seus mais de 50 mil desenhos e na épica galeria de personagens.

A cultura urbana que emerge é global. Mas é local também. Enquanto no Rio de Janeiro ganhava espaço o humor escrachado, aqui em São Paulo a tradução foi mais irônica e agressiva.Bordosa entornava vodca nas noitadas homéricas enquanto Bob Cuspe destilava seu ódio pelo sistema.

Paulistano do bairro da Casa Verde, Angeli conta que aos 14 anos atravessou o Tietê e descobriu São Paulo. A partir daí, começou a desenhar e seus personagens nos levaram pelos desvãos da cidade que vivia seu pior momento, com o abandono da rua e o movimento em direção a enclaves cada vez mais fechados.

É nessa cultura que nasceu Bob Cuspe. Apesar de andar por lugares reconhecíveis, como a São João ou os baixios dos nossos viadutos, interessava mesmo era a indignação com a cidade que se movimentava e abraçava uma modernização excludente e preconceituosa.

Eram os yuppies que herdariam o mundo, não os da Faria Lima ainda, mas os da Paulista da época. Em uma história, Bob e um colega conversam. "Vamos à Paulista cuspir em executivos?" Cuspir em executivos é a maneira de atacar um sistema que o exclui. Foi numa aula de educação moral e cívica que o personagem descobriu o poder do cuspe. Angeli o retratou nos becos escuros e nos esgotos da cidade. O que o torna único, porém, não era a raiva, era a contradição. Na mesma historinha, Bob decide que naquele dia não vai cuspir em executivos, nem estourar caixas eletrônicos, mas comer o bolo de fubá da vó.

Nas tirinhas de Angeli, o bar é central. Não qualquer bar, mas aquele bar onde o personagem encontra os conhecidos, encara os desconhecidos e chama o garçom pelo nome. No Riviera, Rê Bordosa encontrou Juvenal, o garçom (que existiu de fato) e acabou se casando com ele. A certa altura, Angeli decide matar a personagem, desgostoso com a fama que ela adquirira —"quero mostrar que sou eu quem manda". Rê Bordosa morreu de tédio após ser confrontada com a possibilidade de ser mãe e ter uma vida burguesa. Na vida real, o bar Riviera foi salvo por um grupo de empresários, mas na reforma perdeu, claro, aquela aura underground.

A cena underground mudou de lugar, mas nos anos 80 nada se comparava ao espanto de entrar no Madame Satã e ver uma mulher metida numa jaula gigante, comendo um repolho com calma. Em bares mais prosaicos da Vila Madalena, Pompeia ou centro, os lugares por onde Angeli andou —e anda— estão aí ainda com outros nomes e cara. Empanadas, Urca, Bartolo, Pé pra Fora contam histórias de bairros antes de serem invadidos por torres de gosto duvidoso e frequentadores menos interessados em discutir o sistema.

Na contradição do "pogréssio", como cantou Adoniran Barbosa, a cidade também é mais plural, e Angeli captou a liberação do próprio corpo para o prazer, a homossexualidade (vejam as tiras do 68 e do Nanico), o hedonismo e por que não o niilismo. A série de tirinhas Angeli em Crise retratava justamente as idiossincrasias do cartunista que organizava meticulosamente seu estúdio e que podia ficar, como ele mesmo diz, uma semana sem ver ninguém, convivendo com os fantasmas da velhice e do ridículo.

Para além de Wood & Stock ou dos Skrotinhos, São Paulo é em si um personagem. Uma cidade caótica retratada em desenhos detalhadíssimos. Distópica ou real, as favelas e as periferias amontoam centenas de casas e pessoas em cada quadrinho. A pobreza traz a desilusão, como na cena dos meninos sem-teto que discutem a existência de coelhinho da Páscoa, do Papai Noel e... das mães.

Consciente da sua força ("eu sou contundente mesmo"), Angeli atira contra tudo: a desigualdade, a corrupção, o racismo, a elite alienada, o destruidor das florestas e, claro, a invasão dos carros na nossa cidade. Há toda uma safra de desenhos de várias épocas que contam sobre uma cidade em que os carros tomaram o espaço das pessoas. E não deixa de ser lírica uma foto sua no Minhocão na década de 1980, rindo para o fotógrafo e o raro asfalto vazio.

Espero que essa condição ruim possa preservar a inteligência e o inconformismo de um dos maiores retratistas de nosso tempo e que a gente possa continuar encontrando com ele e seus personagens por aí nos bares de São Paulo. A Companhia das Letras promete uma edição gigante de sua obra. Vale esperar.

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