Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Descrição de chapéu trânsito

A cidade do século 21 exige um novo paradigma para a rua

Ruas planejadas para a fluidez dos veículos em detrimento dos pedestres ameaçam a urbanidade e a vitalidade da cidade

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O século 20 foi o século do carro. Nos Estados Unidos do pós-guerra, o governo dedicou recursos para a criação de uma rede de estradas por todo o país e mudou a cara das cidades: ruas largas, amplas faixas de rolamento, velocidades altas e pouquíssimo espaço para os pedestres.

Hoje, pessoas que construíram essa infraestrutura parecem estar se arrependendo. É o caso do engenheiro de trânsito americano Charles Marohn, que lançou um livro emblemático. Depois de trabalhar anos construindo ruas mais largas e rápidas, ele se deu conta de ter contribuído para criar lugares mais perigosos e com menos vitalidade.

Na foto, trânsito pesado na EPTG, uma das principais avenidas de Brasília (DF) que liga a região central da cidade às regiões administrativas de Águas Claras, Taguatinga e Ceilândia
Na foto, trânsito pesado na EPTG, uma das principais avenidas de Brasília (DF) que liga a região central da cidade às regiões administrativas de Águas Claras, Taguatinga e Ceilândia - Pedro Ladeira - 7.jun.2022/Folhapress

No seu livro "Confessions of a recovering engineer", ainda sem tradução, ele trata com candura surpreendente a sua conversão. Depois de sofrer um acidente, ele começou a pregar pela revisão do paradigma para as ruas. Mais do que espaços de passagem de veículos, as ruas são lugares onde a vida acontece.

Marohn cunhou o termo Stroads (streets+roads), que em português poderia ser algo como "rodoruas" ou "estraduas": são as ruas que têm casas, atividades comerciais, escolas, mas onde os veículos trafegam em velocidades de estradas.

É um gancho interessante para pensarmos na transformação das ruas brasileiras. Durante anos, nós também perseguimos o aumento da fluidez dos veículos ao custo da urbanidade. Na expansão das cidades médias brasileiras, essas "rodoruas" parecem ser uma configuração cada vez mais comum.

Em São Paulo, temos exemplos variados da invasão automobilística por todas as partes. Não só nas vias expressas como as marginais, a Radial e o Minhocão, mas também nas ruas que foram sendo engolidas pelo trânsito – a Prestes Maia, a Tiradentes, a Washington Luiz, a Avenida do Estado, a Ricardo Jafet e até ruas de bairro como a Cardeal Arcoverde são ruas onde o convívio fica abafado pelo trânsito avassalador.

As calçadas parecem apertadinhas, os predinhos originais perdem valor, os salões de cabeleireiras, os botecos e as lojinhas tentam conviver com o barulho e a poluição enquanto as pessoas se acotovelam nas filas dos ônibus.

E como as ruas podem ser melhores?

Há muitos modelos sendo discutidos e implantados no mundo todo. Um dos mais conhecidos é o conceito de ruas completas– aquelas que são desenhadas para garantir uso seguro e mobilidade para todos os usuários. Isso inclui pessoas de todas as idades e habilidades, sejam motoristas pedestres, ciclistas ou passageiros do transporte público. Algumas providências para melhorar a vitalidade das ruas, porém, são quase consensuais.

A primeira coisa a se fazer é pensar nas calçadas e travessias. A calçada é o item básico da urbanidade, é barata e razoavelmente simples de arrumar. Nas periferias, com ruas mais estreitas e calçadas quase inexistentes, a solução precisa passar por um desenho urbano que desestimule a velocidade dos automóveis e que permita o uso compartilhado.

Também precisamos discutir a lei: a responsabilidade pela conservação hoje é dos moradores, mas isso não está funcionando, até porque a Prefeitura praticamente não fiscaliza buracos e degraus. No quesito manutenção, Marohn sugere uma abordagem prática e básica para a municipalidade: surgiu um buraco? Conserta-se. A faixa de pedestres está apagada? Pinta-se, imediatamente.

A segunda providência é diminuir a velocidade nas ruas. A 30 km/h, um atropelamento resulta em morte em 10% dos casos. A 60 km/h, o risco de morte sobe para 98%. Diante disso, o esforço para reduzir a velocidade tem que ir muito além de colocar uma placa. É preciso fiscalizar e mudar o desenho das ruas, para garantir que um motorista tenha que reduzir quando chegar perto de um ponto de travessia de pedestres ou uma ciclovia.

A terceira preocupação é melhorar a relação dos prédios com a rua. Ruas mais confortáveis não são cercadas por paredes altas e muros, mas por vitrines, bares, árvores, galerias comerciais. Em São Paulo, estamos assistindo à construção de centenas de novos prédios nos eixos de transporte. Isso faz parte dos objetivos do Plano Diretor. O que não está previsto, porém, é o efeito nefasto de construções gigantescas com muros, garagens e empenas voltados para a calçada, o que gera uma paisagem desalentadora, que desestimula a convivência.

Finalmente, é preciso cuidar com obsessão dos detalhes e dos equipamentos urbanos. Na cidade cada vez mais quente, é preciso garantir amenidades para quem anda a pé, desde árvores, bancos, parklets e pontos de ônibus, até o planejamento de áreas para os entregadores de serviços de delivery. A complexidade faz parte da cidade, abraça-la é parte de qualquer solução.

Há projetos interessantes sendo testados em São Paulo, de redução de velocidades e de redesenho de ruas perto de terminais e escolas. Outro dia, assisti a uma boa apresentação de uma equipe da CET sobre isso. Eles selecionaram uma rua com muitos acidentes no bairro de São Rafael, na Zona Leste. Os carros, motos e ônibus trafegam em velocidade alta, há poucos pontos de travessia e em alguns pontos, as calçadas são tão estreitas que as crianças têm que andar nas ruas.

O diagnóstico é preciso, o projeto é bom e necessário, mas falta velocidade na implantação. Para cada lugar, as equipes têm que conhecer os problemas dos moradores, fazer o projeto, licitar, escolher empreiteiras e acompanhar as obras. Precisamos multiplicar por dez ou cem o número de intervenções previstas – hoje há apenas quatro no plano de metas.

É uma mudança de paradigma na Prefeitura, que envolve relocação de verbas e de recursos. Em 1970, o Minhocão foi construído em apenas um ano. Em 2022, é hora de termos a mesma velocidade para os projetos que promovem urbanidade em vez de subtraí-la

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