Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mauro Calliari

Nas desventuras de um jovem recenseador, a empatia pelas pessoas e a curiosidade pela cidade

No trabalho de visitar casas e cortiços, conheci pessoas diferentes e aprendi a importância do trabalho de formiguinha para entender as mudanças de São Paulo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Demorou, mas o novo Censo finalmente vai acontecer e o IBGE anunciou a contratação de quase 250 mil recenseadores. Em 1980, no meu primeiro emprego, fui um deles.

O trabalho parecia simples. Eu deveria visitar todas as casas e apartamentos dentro de uma região em Pinheiros, que eles chamavam de "setor censitário". No meu plano, daria para pegar até mais uma ou duas regiões dentro do período de dois meses.

Não foi tão simples. Na hora que apertei a primeira campainha, percebi que os quarteirões eram muito mais densos do que faziam supor os mapinhas do IBGE. Cada casarão era um cortiço. Em vez de uma, eram quatro, cinco, até dez famílias, cada uma se apertando num cômodo, com um fogareiro como cozinha. Banheiros eram coletivos.

A cada quatro domicílios, cabia aplicar um questionário enorme, com dezenas de perguntas que iam desde o acesso à rede de esgoto até o grau de instrução de cada membro da família, passando por detalhes sobre o tipo de moradia, o trabalho e a mobilidade.

Funcionário do IBGE trabalha em pesquisa preliminar do Censo, em São Paulo - Zanone Fraissat - 21.jun.2022/Folhapress

Ao fim de um mês, quebrei a perna e tive que usar muletas. Os chefes do IBGE foram inflexíveis: nada de pagamento para quem não terminasse o trabalho. Um amigo se ofereceu para me ajudar, então passamos a atuar como um time, concentrados em planejar visitas, tocar campainhas, mostrar crachás, fazer perguntas e anotar meticulosamente as respostas, entabular conversa breve e dar conta da trabalheira.

As pessoas nos recebiam bem, havia sempre um café coado e às vezes até umas rosquinhas para a dupla de recenseadores, mas sempre há os casca-grossa. Na rua Artur Azevedo, um morador proto-negacionista dizia que que o era um direito individual não responder a nenhuma pergunta. Na Mateus Grou, fomos expulsos aos berros de um apartamento por um marido ciumento que não gostou de encontrar sua mulher sendo entrevistada numa tarde sonolenta. Na Teodoro Sampaio, nos deparamos com o pior pesadelo de um recenseador —o "morador ausente". O homem era piloto de avião. Ao cabo de dois meses e dezenas de visitas, nos rendemos à evidência —ele não seria encontrado nunca.

Voltei a essa região outro dia. Nada parece reconhecível. As casas coletivas deram lugar aos prédios com varandas gourmet e garagens para a rua. A barbearia, o fotógrafo e o vidraceiro desapareceram para abrir espaço para uma cadeia de supermercados. Ali perto, surgiram uma ciclovia e uma estação de metrô. Me dou conta de que nas minhas visitas conheci um pedacinho mínimo de uma mudança gigantesca que estava em curso.

De lá para cá, a cidade ganhou quase 4 milhões de novos habitantes. Grande parte deles foi morar cada vez mais longe dos bairros centrais. As favelas representavam menos de 1% no início da década de 1970 e hoje abrigam 19% da população. As periferias aumentaram a ocupação nas franjas da cidade, na beira das mesmas represas que nos dão a água que todos bebemos.

Os bairros parecem menos diversos que antes. No mesmo quarteirão, mesmo em moradias muito diferentes, moravam pessoas tão distintas quanto um pequeno empresário e o funcionário de um bar, uma professora universitária aposentada e um casal de idosos analfabetos.

Também aprendi a levar informação a sério. O IBGE fazia o censo religiosamente a cada dez anos, com o que me pareceu bastante rigor. Participei de um treinamento antes da fase de campo e de muitas conversas com os supervisores, que iam conferir o que escrevíamos nos questionários visitando uma amostra de domicílios.

A soma dessas informações todas é essencial. Os relatórios do Censo são detalhadíssimos. A União usa esses dados para determinar o repasse de dinheiro a cada município. As cidades usam os dados para conhecer os problemas de habitação, transporte e emprego e para planejar suas políticas em cada bairro. Até a revisão do Plano Diretor de São Paulo, por exemplo, que está acontecendo agora, se ressente de não termos as informações atualizadas do Censo que deveria ter sido realizado em 2020 e não foi.

Pessoalmente, ter sido recenseador foi uma experiência única. Conheci milhares de pessoas e nunca esqueci da expectativa de entrar nas casas de gente com sotaques, cores, jeitos e profissões diferentes. Torço para que os novos recenseadores encontrem pessoas interessantes, aprendam sobre a cidade, despertem a empatia e ganhem um dinheiro honesto.

Ah, o que eu ganhei deu exatamente para comprar uma passagem de volta de La Paz a São Paulo. No avião, fantasiei que o piloto talvez fosse o tal "morador ausente" da Teodoro Sampaio. Ele voou direitinho, sem balançar nem perder o rumo e compensou todo o trabalho que causara, ao me trazer em segurança de volta para casa.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.