Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Como uma favela em São José do Rio Preto mobilizou governo, empresas e doadores, mudou de nome e ganhou visibilidade

Veja fotos de como ficará a Favela Marte, que será reconstruída e promete ser uma vitrine para novos projetos

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A cena é inusitada. No Jornal Nacional de 19 de março deste ano, o avião fretado pousa em São José do Rio Preto. Mais de cem empresários descem e vão até a Favela Marte. Ali, tiram fotos, entram nos barracos e conversam com moradores. A cena é o resultado de uma das mais midiáticas mobilizações em torno de um projeto de reconstrução de uma favela no Brasil.

Na semana passada, estive no local, num dia em que os últimos moradores estavam mandando seus pertences embora e os barracos já começavam a ser destruídos. O cenário distópico permite entrever a precariedade da vida no local até então. Casas feitas de sobras de plástico e ripas de madeira. Lixo. A imagem de um vaso sanitário solitário num resto de cômodo expõe a falta de ligação com o esgoto, a precariedade dos aposentos, a presença de escorpiões. A favela vai ser totalmente reconstruída.

Essa mobilização aconteceu num tempo tão rápido que chega a ser surpreendente. Como, em um estado com milhões de pessoas morando em favelas, uma área relativamente pequena conseguiu mobilizar tanta gente e obter tanta visibilidade?

Projeto da futura favela Marte, hoje chamada de Vila Itália, em São José do Rio Preto (SP)
Projeto da futura Favela Marte, atual Vila Itália, em São José do Rio Preto (SP) - Boldarini Arquitetos Associados/Divulgação

Uma série de fatores pode explicar essa mobilização.

O primeiro fator é que essa é a única favela oficial de São José do Rio Preto, um constrangimento numa cidade de quase meio milhão de pessoas com alto IDH. A possibilidade de zerar o déficit habitacional é sedutora para qualquer gestor municipal, mas ali há uma real condição para a transformação.

As condições físicas da favela também ajudam a pensar em uma intervenção. Ela está numa área relativamente plana, entre uma ferrovia e uma reserva. Ela também não é grande, 240 barracos para 673 pessoas. Em São Paulo, isso equivale a apenas um pedacinho de uma grande favela. Também é um local em que a presença do tráfico ainda não chegou com a intensidade que chegou a outras.

Tudo isso explica um pouco das condições objetivas para a escolha desse lugar, mas faltava entender qual é a força capaz de juntar a comunidade local, o poder público e uma parcela importante do empresariado brasileiro em torno de um grande projeto.

Tudo parece ter começado com a mobilização da comunidade em torno de demandas para melhorar acesso e condições de habitação, como me explicou o líder comunitário Benvindo Nery Pereira. Nesse momento, o Instituto Valkírias World, da empreendedora social Amanda Oliveira, ali de Rio Preto, deu visibilidade à causa e levou o problema mais longe.

Vila Itália, favela em São José do Rio Preto que será reconstruída
Vila Itália, favela em São José do Rio Preto que será reconstruída - Divulgação

E aqui aparece um personagem incontornável. Edu Lyra, CEO da ONG Gerando Falcões. O empreendedor, que cresceu numa favela, foi o propulsor do projeto, conversando com moradores, envolvendo empresas e doadores, engajando a prefeitura e o governo do Estado. O dinheiro veio. Serão R$ 24 milhões vindos da CDHU, R$ 15 milhões da Prefeitura de Rio Preto, R$ 4 milhões do Fundo Social de São Paulo e R$ 15 milhões (por enquanto) de doações angariadas pela ONG, fora as dezenas de ideias de capacitação e melhorias que começam a surgir antes mesmo da construção, como o acordo para wifi grátis, anunciado nesta quinta-feira (11).

O projeto arquitetônico e urbanístico ficou a cargo de Marcos Boldarini, arquiteto que, junto à Secretaria de Habitação de São Paulo, tem criado projetos funcionais e bonitos em áreas precárias. As pessoas do local discutiram as ideias e optaram pelo formato de residências horizontais, em vez de prédios. Assim, o plano prevê casinhas, lojas, praças, ruas compartilhadas, um centro comunitário e até um inesperado Museu da Pobreza, que vai fazer as pessoas lembrarem de como eram os tempos mais difíceis. Basta comparar com qualquer projeto do Minha Casa, Minha Vida ou Casa Verde e Amarela para constatar a qualidade do que está sendo proposto.

Projeto da futura favela Marte, hoje chamada de Vila Itália, em São José do Rio Preto (SP)
Projeto da Favela Marte - Boldarini Arquitetos Associados/Divulgação

Até o nome da favela mudou, de Vila Itália, para Marte 3D. A ideia é que a pobreza acabe antes "que Elon Musk colonize Marte". Pode parecer estranho, mas o fato é que os moradores votaram, aprovaram e é com o novo nome que o projeto deverá ser inaugurado em dois anos. Essa preocupação de olhar para um futuro que ainda não existe parece ser parte do espírito da Gerando Falcões. A maior de suas bandeiras, o empreendedorismo pode soar estranha às condições de uma favela, mas evoca uma visão de mundo sedutora para quem tem pouco ou quase nada: a de que as coisas vão melhorar.

Se der certo, essa história pode gerar três reflexões. A primeira é que dá para ser muito mais eficiente no combate à precariedade da habitação, uma prioridade nacional, coordenando as várias esferas públicas e principalmente atraindo apoiadores privados. A segunda é que parece haver mais gente e empresas interessadas em apoiar boas iniciativas no país, desde que elas confiem que as coisas vão acontecer. A terceira é que moradores são capazes de se organizar para pleitear, decidir e legitimar bons projetos.

Uma questão, porém, permanece. Qual é o grau de replicabilidade desse projeto? Será que essa trabalheira toda consegue ser refeita em outros lugares? Lyra acredita que sim, tanto é que não há apenas um, mas quatro projetos-piloto. Além de São José do Rio Preto, há uma favela em Maceió, outra em Ferraz de Vasconcelos (que também está mudando de nome, de Boca do Sapo para Favela dos Sonhos) e a mais emblemática, no Morro da Providência, no Rio de Janeiro, provavelmente a primeira favela brasileira.

O maior desafio é a escala. Apenas a cidade de São Paulo tem quase 3 milhões de pessoas em favelas. Vale a pena conhecer as intervenções do Programa de Reurbanização de Favelas da Prefeitura, que têm que se adequar às diferentes condições de cada lugar. Em Paraisópolis, lugar de altíssima densidade, a solução são os prédios baixinhos. No Jardim Edith, ao contrário, foi construído um prédio alto, um exemplo de dignidade e inserção urbana. No Cantinho do Céu, uma área precária na periferia, foi feita a ligação de esgotos para evitar que 10 mil pessoas continuassem a jogar esgoto na Billings.

Não há fórmula mágica para resolver o problema da habitação no Brasil, mas a mobilização em torno de bons projetos e o trabalho junto das comunidades é certamente um bom caminho para que as coisas aconteçam. Ao final dessas visitas, pesquisa e conversas, me rendi ao fato de que qualquer projeto que ajude as pessoas a viverem num ambiente digno merece aplauso e torcida. Que venham muitos mais.

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