Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Deus é brasileiro ou neozelandês?

O que fazer para sobreviver física e mentalmente em meio ao pânico, desespero e impotência

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Depois de confessar que estou triste na coluna “Tristeza não é doença”, recebi muitas dicas e conselhos dos meus leitores e leitoras da Folha.

“Pare de ruminar pensamentos negativos. Distraia seus pensamentos e foque em quatro coisas positivas, pois o cérebro não consegue pensar em muitas coisas ao mesmo tempo.”

Tentei pensar em quatro coisas positivas, pois só fico ruminando pensamentos negativos sobre os genocidas que estão gozando com o sofrimento, a dor e a morte dos brasileiros. Não deu certo. Em vez de ruminar um único pensamento obsessivo, agora estou ruminando incontáveis pensamentos negativos sobre os sociopatas, criminosos, assassinos, psicopatas, covardes, fascistas, monstros, desumanos, vermes, perversos, sádicos etc. Descobri que o meu cérebro consegue ruminar muito mais do que quatro pensamentos negativos ao mesmo tempo (e nenhum positivo).

“Tudo passa: o bom e o ruim, a alegria e a tristeza, a saúde e a doença. Repita como um mantra: ‘Vai passar’.”

Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia
Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia - Fiona Goodall/Reuters

Tentei adotar o “vai passar” como mantra, mas só consegui visualizar fanáticos “imbrocháveis” em bares e festas clandestinas, aglomerações e manifestações contra o isolamento social, sem máscaras, sabotando as vacinas e as recomendações da ciência.

Estou desde 12 de março de 2020 isolada em casa, sem sair uma única vez. Perdi a esperança de voltar à “vida normal”, de ir ao dentista, fazer exames médicos, abraçar meus amigos nonagenários, caminhar descalça na areia da praia, cortar o cabelo e todas as coisas simples que eu fazia rotineiramente e que, agora, tenho pânico só de pensar em fazer. Vai passar?

“Ocupe o corpo e a mente com coisas boas e belas. Não deixe o mal e o medo contagiar o coração e a alma. Aceite seus limites. Concentre-se naquilo que depende só de você. Não desperdice tempo, saúde e energia com o que você não pode controlar.”

É o mais difícil para mim: sofro muito com problemas que não posso resolver. Apesar de buscar fazer o máximo e o melhor que posso, fico angustiada por não ter o poder de salvar as vidas dos brasileiros e impedir a destruição do país. Não consigo dormir mais do que duas ou três horas por noite, passo a madrugada escrevendo, lendo livros de filosofia e psicologia, trabalhando, procurando fazer coisas positivas.

Tento focar nas pequenas coisas boas que posso fazer no dia a dia. Procuro me alimentar das risadas gostosas dos meus melhores amigos, Guedes, de 97 anos, e Thaís, de 95. Todos os dias aprendemos coisas novas: estudamos “Os Lusíadas”, lemos Clarice Lispector, fazemos anagramas, cantamos etc. É o momento mais feliz do meu dia. Sempre penso que se eles estão enfrentando esse pesadelo com tanta coragem, força e equilíbrio, eu não tenho o direito de me entregar ao pânico, ao desespero e à impotência.

“Tire o foco da própria dor e passe a cuidar da dor de quem precisa de você. Tenha a coragem de dizer não e se afaste das pessoas tóxicas.”

Foi o melhor conselho de todos. Estou aprendendo a tirar o foco do meu próprio medo e desespero, e me concentrando em cuidar dos meus amores. Cuidar de quem precisa de mim está me ajudando a controlar a ansiedade excessiva e a diminuir a sensação de inutilidade e fracasso. Também me afastei dos parasitas e vampiros emocionais, e passei a dizer não a tudo o que não é prioritário, significativo e importante, aqui e agora.

“Reze e agradeça a Deus por ter o privilégio de poder ficar em casa.”

Todos os dias rezo e agradeço por estar protegida dentro de casa, com saúde, com meu marido e meus amigos cuidando de mim, e com dinheiro suficiente para pagar as contas e comprar comida.

Nas minhas noites de insônia pergunto a Deus: “Até quando vamos ser prisioneiros dos genocidas que estão destruindo o país? Por que não temos uma Jacinda Ardern [primeira-ministra da Nova Zelândia, país que conseguiu controlar a pandemia] para proteger, cuidar e salvar as vidas dos brasileiros?”. Ele não me respondeu até hoje.

Afinal, Deus é brasileiro ou neozelandês?

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