Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg

Como posso encontrar o propósito da minha vida?

A proximidade da morte ensina a descobrir o significado das nossas vidas

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“Mirian, escrevo só para agradecer. Suas colunas são um bálsamo em tempos sombrios. Comecei a fazer terapia para me conhecer, mas ainda não sei qual é o meu propósito. Como posso encontrar o propósito da minha vida?”

Quando li o e-mail da minha jovem leitora, lembrei da coluna de Gilberto Dimenstein na Folha de 19 de julho de 2009: “Melhor viver do que morrer com câncer”.

Dimenstein contou a experiência de uma terapia realizada em hospitais de Nova York baseada no livro “Em Busca de Sentido”, do psiquiatra Viktor Frankl. Nas sessões de busca de sentido, os pacientes com câncer avançado deveriam refletir sobre o verdadeiro significado da vida. Eles aprenderam a viver um dia de cada vez e colocar o foco no momento presente, fazendo coisas simples e prazerosas como ouvir música, caminhar pelo parque e admirar o pôr do sol. Todos demonstraram menos ansiedade e uma vontade maior de viver. Um deles disse: “Vi que não precisava trabalhar tão duro para descobrir o significado da vida. Estava ao alcance da minha mão”.

Casal deitado sorrindo
Como encontrar o propósito da vida? - Deagreez/AdobeStock

Como mostro no livro “A Bela Velhice”, Frankl me inspirou a descobrir o meu projeto de vida. Ele foi prisioneiro, de 1942 a 1945, em quatro campos de concentração. A esposa grávida, os pais e o irmão foram assassinados pelos nazistas. Aprendi com ele que, apesar das circunstâncias trágicas, nenhum monstro genocida consegue destruir a liberdade de escolher a atitude que podemos ter frente ao sofrimento inevitável.

Dez anos depois, chorei ao ler o corajoso depoimento: “Aquele Gilberto Dimenstein de antes do câncer morreu”, na Folha de 30 de dezembro de 2019.

“Hoje —é até difícil falar ​isso— estou vivendo o momento mais feliz da minha vida. Aquele Gilberto Dimenstein antes do câncer morreu. Nasceu outro. Câncer é algo que não desejo para ninguém, mas desejo para todos a profundidade que você ganha ao se deparar com o limite da vida. Não queria ter ido embora sem essa experiência. Grande parte da minha vida foi marcada pelo culto a bobagens: ganhar prêmio, assinar matéria na capa, o tempo todo pensando no próximo furo. Quando você tem um câncer (ainda mais como o meu, de metástase e de pâncreas, um tipo muito agressivo), não há alternativa. Ou vive o presente ou sua vida vira um inferno.”

Aos 63 anos, ele descobriu que “ver o limite da vida pode ser uma dádiva”.

“Gosto de andar de bicicleta, e comecei a sentir o vento no rosto, como se estivesse sendo beijado. Você vê seu neto deitado com você. Acorda com os bem-te-vis. Descobri só agora a profundidade da relação homem-mulher. Você está com enjoos, dores não apenas físicas, e a pessoa do seu lado o tempo todo. Não conhecia essa cumplicidade nesse nível.”

O seu maior pavor era “passar a vida sem propósito”.

“Com ou sem câncer vamos todos morrer, e se pudermos antecipar essa sensação, vamos evitar várias bobagens. A clareza maior da morte é uma dádiva. Pode ser o começo de um belo fim de vida. Não é que eu ache que morrer é bom, mas você começa a questionar por que existe, e a conclusão é que, se não podemos escolher como entramos na vida, podemos decidir como sair dela.”

No mundo, como no corpo humano, há infecções perigosas que matam, mas também glóbulos brancos que podem curar a humanidade e o planeta.

“Há pessoas que espalham infecções, se xingam, se odeiam. O presidente dos EUA, Donald Trump, e o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, não criaram isso, mas sintetizam essa cultura da infecção, do ódio, do confronto. E há os glóbulos brancos, as pessoas que não deixam o mundo acabar, que inventaram a anestesia, o antibiótico, descobriram a hélice dupla do DNA.”

No dia 29 de maio de 2020, Dimenstein morreu em casa, enquanto dormia. Ele não assistiu à emocionante vitória dos norte-americanos contra o vírus do ódio e do fanatismo. Já os brasileiros continuam sendo sufocados e exterminados pelo vírus do sadismo e da barbárie.

Será que é preciso chegar perto da morte para descobrir o propósito das nossas vidas?

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