Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg

O Brasil da 'sofrência'

O país inteiro está triste e sofrendo com uma tragédia sem fim

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Quando meu marido me deu a notícia da sua morte, não consegui acreditar: "Não é verdade, não é possível".

Fiquei triste, triste, triste, triste, triste…

Minha coluna anterior foi sobre mortes e despedidas, mas não sei como me despedir de você.

Pensei em escrever uma carta, mas o que dizer quando não há nada a ser dito? Ou quando tudo já foi dito?

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Marília Mendonça durante show em Piracicaba, no interior de São Paulo - Mastrangelo Reino - 27.nov.2017/Folhapress

O que escrever para a menina, mulher, mãe, filha, amiga, cantora, compositora? Que estou chorando? Que não sei o que fazer com tanta dor e tristeza?

Não consegui dormir a noite inteira. De madrugada, revi o nosso encontro no "Conversa com Bial", em setembro de 2017: você tinha só 22 anos, mas já era a "rainha da sofrência".

O que mais me encantou foi o seu jeito autêntico de ser você mesma: uma mistura de talento e sensibilidade, força e verdade, coragem e carisma.

A primeira pergunta que o Bial me fez foi: "Como você explica o enorme sucesso de 'Infiel'"? Respondi que todos podem se identificar com a música: todo mundo já traiu, já foi traído ou morre de medo de ser traído algum dia. Nas minhas pesquisas, a infidelidade aparece como o principal problema dos relacionamentos.

Lembra que você disse que achava que sertanejo era música de corno?

"Eu era uma das pessoas que chamava sertanejo música de corno, falava que não gostava de música de corno. Até acontecer comigo, até eu ser corna. Foi uma praga, você sabe essa história? Estava cantando debaixo de uma árvore e aí chegou um cara: 'Você já pensou em cantar sertanejo, fazer uma dupla, tenho alguns contatos de boates em Goiânia'. 'Não, nunca pensei, não gosto de sertanejo'. 'Mas você vai ajudar sua família, vai ganhar um dinheirinho'. 'De jeito nenhum, não vou cantar sertanejo'. Ele olhou para mim e falou: 'Um dia você vai levar um chifre e você não vai só cantar sertanejo, você vai compor sertanejo. Vai ser das mais sofridas...' Aconteceu, igualzinho..."

Você contou que só consegue compor e cantar se for uma história verdadeira.

"A maioria das histórias que eu recebo são de amantes. 'Será que ele vai largar da mulher dele para ficar comigo? O que eu faço?'... Aí eu pego as histórias e faço música... Eu tenho uma coisa nas minhas músicas, desde que eu comecei a compor, eu sempre cantei o que eu quero ouvir. Nem sempre é o que realmente aconteceu. Mas eu quero deixar a história com um final feliz para mim."

O momento em que você foi mais aplaudida foi quando disse que as mulheres não deveriam culpar outras mulheres pelas traições masculinas.

"Se fala tanto em feminismo, mas a mulher culpa sempre a mulher por coisas que a mulher não tem culpa. Se o cara é casado comigo, é meu namorado, foi ele quem me traiu, não foi a amante."

Você fez a plateia rir muito quando falou de um vídeo de uma menina de 13 anos que viralizou na internet.

"Eu tenho 13 anos de idade e quando escuto Marília Mendonça parece que eu já traí, já fui traída, já sofri por amor... E eu nunca beijei na boca."

Não é à toa que eu já escutei de muitas mulheres: "se a Marília Mendonça ouvir a minha história, ela faz uma música".

Você me ensinou que "sofrência" é mais do que um neologismo formado com as palavras sofrimento e carência. "Sofrência" é um estado de espírito de quem sofre em demasia, quando estamos desiludidos e tristes, seja por causa de um amor não correspondido, uma decepção amorosa ou uma traição.

Somos o país da "sofrência". Sua morte trágica, em meio a tantas tragédias e vidas interrompidas, é uma prova cruel de que estamos sofrendo uma dor e uma tristeza sem fim.

Queria escrever uma carta para dizer que você me inspirou a ser uma mulher mais verdadeira, livre e corajosa. Queria dizer também que preciso aprender a transformar a minha tristeza em beleza e potência, como você fez com suas músicas. Mas só consigo dizer uma frase que não sai da minha cabeça desde o dia em que eu te conheci: "Toda mulher é meio Marília Mendonça".

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