Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Agora é que estou aproveitando a vida', diz o ex-técnico Muricy Ramalho

Após títulos e internações, ele diz não ter saudades do campo e vê em Sergio Moro um herói

São Paulo
O ex-treinador de futebol Muricy Ramalho olha mara a câmara em retrato feito para a coluna Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo
O ex-treinador de futebol Muricy Ramalho - Adriano Vizoni/Folhapress

Muricy Ramalho explicava o motivo de não achar Neymar mimado quando pede licença para interromper a entrevista “só um pouquinho”. “Olha a minha neta!”, diz o ex-técnico de futebol, com um vivo sorriso no rosto, ao repórter Bruno B. Soraggi.

 

Ele se levanta e vai em direção à porta de vidro pela qual vê sua mulher, Roseli, trazendo Maria Clara, de oito meses e meio. Assim que pega a criança no colo, Muricy passa a falar com o tom de voz infantil que adultos usam para conversar com bebês.

 

“O que ‘cê’ tá fazendo aqui? Passeando? Que lindeza que ‘cê’ tá”, brinca o avô coruja de 62 anos que carrega a fama de ser ranzinza.

 

“Então”, diz Muricy, de volta à conversa. “O Neymar é um cara diferenciado. Ele é profissional pra caramba. Se dedica demais, se cuida. A gente tem que estar preocupado com esse lado”, diz o ex-técnico, que trabalhou com o atacante brasileiro no Santos.

 

Muricy Ramalho conquistou três campeonatos brasileiros consecutivos pelo São Paulo (de 2006 a 2008), um título nacional pelo Fluminense (2010) e uma Libertadores pelo Santos (2011), entre outros troféus. Ele ainda treinou o São Caetano, o Internacional, o Palmeiras e o Flamengo, onde se aposentou em 2016. Mas é agora que diz estar “aproveitando a vida”. 

 

“Não fiz nada, só trabalhei. Pra caramba, né?”, afirma o paulistano que começou a jogar bola aos nove anos.

 

“Você fica tão viciado em futebol que entra nessa bolha e não vê mais nada”, diz. “Se eu perdia um jogo, não dormia. Se a minha mulher queria conversar, eu não queria. A minha vida sempre foi essa. Eu me alimentava de vitórias, não tinha como.”

 

“Então, pô, não vivi com a minha família, com a minha mulher”, diz o pai de três adultos, casado há 38 anos. 

 

“Agora eu estou fazendo tudo isso. Estou vivendo coisas que nunca vivi, que eu nem sabia que existiam, e isso está me fazendo muito bem”, diz Muricy, que já foi internado por problemas de saúde como diverticulite, pedra nos rins e arritmia cardíaca. 

 

Ele diz trazer da família o apreço pela dedicação à labuta. “Meu pai [que vendia verduras no mercado de Pinheiros] fazia um sacrifício do caramba. E também gostava das coisas certas. Essa [ideia] foi a única coisa que ele deixou para nós. Que não é uma virtude. É uma obrigação de todos, né? A pessoa tem que ser correta”, afirma. 

 

Além da família, ele cita outros exemplos de convivência que marcaram a sua vida. Como o ex-treinador Telê Santana, de quem Muricy foi assistente. “Ele era reto, [com ele] não tinha acordo”, diz. 

 

“Eu sou um pouco desse tipo radical, mas você pode ter certeza de que eu nunca vou te sacanear”, afirma. 

Em 2010, Muricy recusou o convite para ser técnico da seleção brasileira. Segundo conta, ele havia “dado a palavra” de que prorrogaria seu contrato com o Fluminense e não gostou da conversa que teve com o então presidente da CBF, Ricardo Teixeira.

 

“Eu imaginei que fosse ser uma coisa organizada, profissional, do jeito que eu gosto”, lembra. “Aí ele [Teixeira] pinta lá, de bermuda, chinelo. Chama para tomar um cafezinho. Pensei: ‘O cara vai contratar um treinador para a Copa do Mundo e vem desse jeito?’ Não começou legal.” 

 

“Quando eu falei que estava acertado com o Fluminense, ele fez pouco caso. Disse: ‘Vai lá e resolve’. Respondi: ‘Tá resolvido. Vou ficar lá’. Orra! Pensa que está falando com um menino?”

 

“Não ia jogar fora tudo o que já estava conversado. É normal fazerem isso no futebol. Mas comigo não é assim. Se eu fizesse, não ia dormir.”

 

“Um monte de gente me chamou de louco [por não ter ocupado o cargo]”, lembra. “Mas não me arrependo de jeito nenhum. Ia me arrepender se tivesse aceitado.” 

 

“Eu falo que fui técnico da seleção por três horas e meia”, brinca Muricy, referindo-se ao tempo que durou sua reunião com Teixeira.

 

Para ele, a equipe do Brasil que vai para a Copa da Rússia “com certeza” é uma das favoritas. “Estou torcendo mais por causa do Tite. Ele é humilde, trabalhador. É um puta cara”, diz. 

 

 

Segundo Muricy, o esporte brasileiro “está em um momento muito ruim no que diz respeito à ética”. “Ninguém mais conhece essa palavra”, avalia. “Um [José Maria Marin, ex-presidente da CBF] está preso. O outro [Ricardo Teixeira], ninguém sabe onde está, que ele não dá mais entrevista. Que futebol é esse?” 

 

“Precisamos de gente que dê bons exemplos. Está difícil. E infelizmente não é só no futebol”, emenda Muricy, para quem a situação política no Brasil está “horrível”. 

 

“No fundo do poço é onde a gente está, né? Todo dia acontece algo que eu digo: ‘Estamos ferrados mesmo’.”

 

“Vamos perdendo a noção de cidadania”, diz. “É nego indo preso, cara pegando dinheiro por fora. Onde vamos parar? Ainda bem que a gente tem um herói lá, que é o Moro. Mas, pô, tem uma hora que ele não vai aguentar mais brigar tanto assim, né?”

 

Muricy julga a prisão de um ex-presidente um episódio “muito triste”. “Não  importa se foi o Lula ou não. Não tenho nada contra ele. Mas não é legal”, avalia. “A gente tem que acreditar e respeitar a Justiça, que é para todos.” 

 

Sobre candidatos à eleição presidencial deste ano, ele diz ainda aguardar alguém “bem intencionado”. “Nesses velhos que estão aí eu não vou votar. Temos que tirar esses caras, renovar”, diz. E em Bolsonaro? “Não. Ele é muito louco, cara.”

 

Muricy discorda da imagem carrancuda associada a ele, alimentada pelo jeito sisudo e pelas respostas ríspidas que deu a jornalistas durante a sua carreira. 

 

“É que era o meu trabalho, cara. Briga de cachorro grande. Não podia baixar a cabeça. Tinha que defender meu lado, o meu time”, lembra. “Ali eu era sério. Mas, fora isso, não tem nada a ver.”

 

“Várias vezes, no aeroporto ou no supermercado, eu sinto que a pessoa quer se aproximar, fica me olhando.  E de repente vem falar comigo. Eu trato bem, aí ela fala: ‘Pô, demorei para te cumprimentar porque dizem que você é um puta rabugento!’”

 

“Não tenho nada de rabugento”, diz, com um sorriso comedido. “Sou um cara até engraçado. Se perguntar para os meus amigos você vai ver.”

 

Ele enche um copo com a água de uma das garrafinhas que trouxe em uma mala térmica. “Isso aqui é o melhor remédio que existe”, diz. Ao notar que o repórter também se serve, ele brinca: “Vamos encher a cara!”. 

 

Hoje menos estressado, Muricy diz estar viciado no folhetim “O Outro Lado do Paraíso”, da Globo. “Fazia mais de 30 anos que eu não via uma novela. Minha mulher falou: ‘Vamos ver essa’. Eu falei: ‘Não vou ver essa porra, negócio chato.’ Vi um capítulo e nunca mais parei. É um vício”, diverte-se.

 

“Quando eu fiquei internado [por arritmia cardíaca, em 2016, quando comandava o Flamengo], prometi para o homem lá em cima: ‘Se eu sair daqui, não quero mais futebol”, lembra. “E estou cumprindo”, diz o atual comentarista do canal SporTV.

 

“Não tenho saudade nenhuma da beira do campo”, afirma Muricy, que conta ainda receber propostas para treinar grandes times brasileiros. 

 

Convidado pela coluna a posar para uma foto reproduzindo o gesto que ele eternizou com o bordão “aqui é trabalho!”, Muricy cordialmente responde: “Se quiser, eu faço. Eu acho muito chato”.

 

“Já é uma coisa batida”, explica o ex-técnico sobre o movimento com o qual ele bate os dedos de uma de suas mãos na dobra do braço oposto, sobre as veias.“Todo lugar que vou as pessoas pedem para eu fazer isso [a pose]”, conta. “Mas não me irrito, não.”

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