Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Foi como se meu pai morresse outra vez, diz filha do arquiteto do prédio que caiu

A cineasta Denise Zmekhol preparava um filme sobre o edifício antes do desastre

João Carneiro
São Paulo
À esq., o térreo do edifício Wilton Paes de Almeida pouco após sua inauguração na década de 1960; ao lado, a mesma vista da construção em  2015, quando já havia sido tomada pelos sem-teto
À esq., o térreo do edifício Wilton Paes de Almeida pouco após sua inauguração na década de 1960; ao lado, a mesma vista da construção em 2015, quando já havia sido tomada pelos sem-teto - Arquivo pessoal e Plínio Hokama Angeli

Os escombros do edifício Wilton Paes de Almeida ainda soltavam uma fumaça branca quando uma equipe de filmagem chegou ao largo do Paissandu, no centro de São Paulo, para gravar o inesperado desfecho de um documentário que haviam começado alguns meses antes.

 

O prédio modernista de 24 andares, que eles haviam registrado de todos os ângulos no final do ano passado, se transformara agora em uma pilha de concreto e aço, que uma retroescavadeira espremia para dentro de um contêiner com a palavra “sucata”.

 

O grupo era coordenado, à distância, pela cineasta Denise Zmekhol, que repassava instruções e pedia notícias pelo celular. Ela, que vive hoje na Califórnia, dirige um documentário sobre a obra do pai, o arquiteto Roger Zmekhol (1928-1976), que projetou a torre concluída em 1968 e destruída na semana passada. O título do filme será “Pele de Vidro”, nome pelo qual a construção era conhecida.

 

“Foi como se meu pai morresse outra vez”, diz Denise sobre o desabamento do prédio, ocorrido na madrugada de terça (1º).

 

Ela afirma que o documentário é uma maneira de se aproximar do pai, que morreu de infarto aos 48 anos, quando ela tinha apenas 14. E diz que descobriu, durante a pesquisa, outros cerca de 150 projetos dele em São Paulo.

 

No material preliminar que preparou para o filme, Denise lê, em inglês, uma carta a Zmekhol: “Querido papai, escrevo a você de um outro tempo, com o coração cheio de amor e de encanto. Eu era só uma criança quando te perdemos, e minhas memórias se desbotaram com o tempo. Deixei o Brasil para criar minha própria vida. Agora, retorno como uma criança que busca um tesouro.”

 

O tesouro --obra-prima de Zmekhol, tombada como patrimônio municipal e usada como moradia por cerca de 146 famílias de sem-teto após ser abandonada-- ruiu em poucos segundos. Um grave incêndio levou abaixo a construção, deixando mortos e desaparecidos.

 

 

O edifício, diz Denise, foi construído “na época de ouro da arquitetura brasileira”. “Foi aquele luxo, trouxeram os vidros da Bélgica. O proprietário do prédio [Sebastião Paes de Almeida] era dono de uma empresa de vidros, mas não se fazia vidro com cores no Brasil naquela época, então tiveram que importar.”

 

“Foi também um prédio em que meu pai colocou a questão do espaço de trabalho do homem e da mulher, que tinha que ser uma coisa saudável, gostosa de se estar. Antigamente, prédios de escritórios eram salinhas, tudo fechadinho. E [o projeto de Zmekhol] era um espaço mais amplo, aberto. Acho que foi o primeiro prédio de ar-condicionado central no país na época. Enfim, tinha mil luxos.”

 

No final da década de 1970, a construção foi vendida à União para sanar dívidas tributárias acumuladas pelo dono. Ela logo seria ocupada pela Polícia Federal, que permaneceu no local até 2003. Durante a ditadura militar, conta Denise, o ativista argentino e ganhador do Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel chegou a ser interrogado ali.

 

O abandono do edifício abriu espaço para que o movimento LMD (Luta por Moradia Digna) tomasse posse do lugar. O documentário mostrará o percurso do prédio, da construção à destruição, em paralelo aos acontecimentos do país. Contará também com depoimentos de arquitetos, jornalistas e membros de movimentos sociais de moradia.

 

A história, diz a cineasta, é “uma grande metáfora do Brasil”. “E esse final… Poxa, é triste! Não é o que a gente espera, o que a gente gostaria. Você fica pensando: ‘Puts, esse é o fim da história. Uma explosão, uma destruição’. É assim que eu vejo: como uma metáfora da situação do Brasil nos últimos 50 anos”, afirma.

 

Em outro trecho da carta ao pai, ela comenta o destino do edifício antes do desabamento: “Meu coração está dividido. Como filha, quero proteger sua criação. Mas vejo que esse lugar se tornou um abrigo. Suas paredes protegem tantas pessoas. E isso me toca o coração.”

 

“Por um lado, eu gostaria que o prédio fosse bem preservado, que tivesse as características originais e a visão arquitetônica que meu pai teve quando o construiu. Que estivesse lindo, brilhante, bonito”, diz Denise. “Mas, ao mesmo tempo, eu via as pessoas morando lá e pensava: ‘Poxa, é um abrigo, uma casa, uma moradia. Acho que as pessoas das ocupações vão morar nesses lugares porque não têm muita opção”.

 

“São duas coisas corretas, você entende? Tanto o edifício ser preservado, porque é um patrimônio histórico, foi a obra-prima do meu pai. Mas também é certo que as pessoas tenham direito a um abrigo, né?”

 

Denise visitou o edifício no final do ano passado. Tentou subir até as residências, mas não foi autorizada por alguns dos moradores. E viu a criação do pai em estado de degradação: “Lógico, estava super diferente do que era. Estava tudo fechado. Tudo que é vidro, luz, estava tapado.”

 

Constatou também, no térreo, a má preservação de uma escada em espiral, marco do prédio e de outras edificações modernistas. “Mas eu fiquei pensando assim: ‘Poxa, será que essa escada é o único acesso?’. Porque não tinha mais elevador no prédio, né? Então pensei: ‘Será que essa escada tá existindo esse tempo todo e é o único acesso para que essas pessoas tenham essa moradia aqui?’.”

 

Um dos entrevistados para o documentário disse: “Eu tenho certeza que, se seu pai estivesse vivo, estaria feliz de saber que o prédio dele serve como abrigo”. “Achei legal ele falar isso, mas não sei [se é verdade]”, comenta Denise. Ela conta que Zmekhol não era “de esquerda total, nem de direita total”.

 

Quando soube da tragédia, a cineasta cancelou seus compromissos e embarcou para o Brasil na quinta (3). “Pode ser minha oportunidade de conhecer as pessoas que moravam lá dentro”, disse. Enquanto ela voava até São Paulo, parte dos moradores permanecia acampada no largo do Paissandu, recusando-se a ir para o abrigo oferecido pela prefeitura, considerado inadequado por eles.

 

Ela conta que ficou tocada ao saber que moradores perderam até os documentos de identidade no incêndio. “Também sou jornalista, cineasta. Se você não tiver empatia pelas situações extremas, como é que você cria alguma coisa que toque as pessoas?”

 

Denise diz temer que a tragédia sirva de pretexto para um cerco a edifícios em situação semelhante. “Tenho muito medo —e acredito que está acontecendo bastante— que os governos comecem a culpar as outras ocupações ou a usar o que aconteceu nesse prédio como um bode expiatório, [dizendo]: ‘Tá vendo? A gente não pode permitir isso!’.”

 

“Acho que esse prédio vai mudar toda a relação da sociedade com os governantes. Explodiu aí uma bomba, mesmo. Ficou tudo muito visceral pra todo mundo”, afirma. “Esse acontecimento trágico deixou tudo mais à vista”.

 

Ela conta que ainda não conseguiu processar a tragédia. “Saber que morreram pessoas, que há desaparecidos, que o prédio não existe mais… As pessoas perderam a moradia, a cidade perdeu um prédio histórico. Todo mundo perdeu”, afirma. “As pessoas que morreram e o prédio em si são muito maiores do que aquilo que eu possa estar sentindo hoje.”

 

“Talvez eu ficasse esperando anos para saber como eu ia terminar [o documentário]. Mas agora o filme já tem o seu final.”

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