Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Discussão sobre o aborto abre crise entre advogados de São Paulo

Grupo se manifesta contra comissão que afirma que prática é 'assassinato'

Manifestantes participam de um ato a favor da legalização do aborto em São Paulo, em julho
Manifestantes participam de um ato a favor da legalização do aborto em São Paulo, em julho - Rahel Patrasso/Xinhua

Divulgado pela Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados de São Paulo, o texto intitulado “Aborto é assassinato” provocou um racha na entidade criada em 1874 e que reúne alguns dos mais ilustres juristas do país.

Em nota enviada ao jornal, o presidente do Iasp, José Horácio Halfeld Ribeiro, afirmou que a posição apresentada pela Comissão Permanente de Estudos de Direitos Humanos, presidida pelo advogado Ricardo Sayeg, não reflete a posição oficial pelo instituto.

Afirma também que a comissão não tinha autorização para enviar o documento ao Supremo Tribunal Federal, que se prepara para julgar ação que discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez.

“Não adianta querer negar, morte é morte", afirma o texto da comissão de direitos humanos. “Ninguém tem liberdade para matar, mesmo que seja a mãe do embrião vivo.”

José Horácio diz que o instituto prima pela pluralidade e pelo consenso mútuo e que seus posicionamentos são discutidos em reuniões abertas e embasadas em “argumentos jurídicos consistentes”. 

“O documento apresentado na reportagem não passou por esse processo de aprovação”, afirma Horácio. ”É um relatório encaminhado ao STF sem aprovação do conselho e da diretoria da instituição.”

À Folha, o diretor para assuntos legislativos do instituto, Mário Delgado, disse considerar que o STF tem, sim, a prerrogativa de analisar se as disposições sobre o aborto estabelecidas no Código Penal são constitucionais ou não.

Para a comissão, cabe ao Legislativo, e não ao Judiciário, decidir o tema. “Liberar o aborto com lei expressamente criminalizando seria ideologia pura, absolutamente incompatível com a imparcialidade do Poder Judiciário.”

Delgado defende também a flexibilização da legislação, mas não a liberação total. Hoje o aborto é permitido em três tipos de gravidez: decorrente de estupro, que cause risco à vida da mulher ou de feto anencéfalo.

Para o diretor, deveria ser aceito também nas situações em que a gravidez represente um risco para a integridade psicológica da gestante, bem como quando a mãe não tem condições econômicas de sustentar o filho. “Mas entendo que o aborto não pode ser instrumento de planejamento familiar ou de controle de natalidade.”

Presidente da comissão de direitos humanos do instituto, Ricardo Sayeg afirma que a comissão tem autonomia e independência para se posicionar. “Sempre se manifestou ainda que de modo contramajoritário”, declara.

“É da história da luta dos direitos humanos. A comissão não pode ficar amarrada aos caminhos burocráticos.”

Diz também estranhar que somente nesse caso tenha havido uma reação contrária. “Já fizemos inúmeros outros documentos e nunca houve esse tipo de estranhamento.”

Incomodados com o texto aprovado pela comissão, um grupo de advogados assinou um comunicado segundo o qual “para além da complexa e inconclusiva discussão sobre o início da vida, com as diferentes correntes bioéticas a respeito, afirmar que aborto é assassinato é um equívoco jurídico, com o qual não se pode compactuar”.

Já haviam assinado o documento os advogados Miguel Pereira Neto, Alberto Zacharias Toron, Bruno Salles Ribeiro, Rafael Lira, Rogério Taffarello, Ludmila Groch, Clara Masiero, Gustavo Polido, Bruna Borges, Marcela Ortiz, Pierpaolo Bottini, Fabio Tofic Sminatob  e Augusto Arruda Botelho.

“Por mais que o embrião e o feto possam ter expectativa de direito, não podem ser considerados ´pessoas’ segundo o ordenamento jurídico pátrio”, diz o texto. “Por essa razão, não se pode matar ou cometer um assassinato contra um organismo ainda em gestação.”

O advogado Rubens Naves, membro do Iasp, diz que a manifestação da comissão não encontra respaldo no conjunto dos advogados e não pode ser encarada como o pensamento de toda a comunidade jurídica.  ”É preciso defender o interesse público comum ”, afirma.

Leia  íntegra da nota divulgada na manhã desta quarta (22): 

"O Código Penal de 1940, no título do crimes contra a vida, trouxe nos arts. 124 a 126, a criminalização de três condutas ligadas ao aborto, a saber: (i) provocar aborto em si mesmo ou permitir que se aborte; (ii) provocar aborto em gestante sem consentimento e (iii) provocar aborto com consentimento.

Na verdade, como um tema atinente à disciplina da bioética, o aborto deve ser analisado em suas diversas facetas multidisciplinares, com socorro à medicina, à biologia, à sociologia, à antropologia, à filosofia, à criminologia e, finalmente, ao direito.

Para além da complexa e inconclusiva discussão sobre o início da vida, com as diferentes correntes bioéticas a respeito, afirmar que o aborto é assassinato é um equívoco jurídico, com o qual não se pode compactuar.

Por mais que o embrião e o feto possam ter expectativa de direito, não podem ser considerados “pessoas” segundo o ordenamento jurídico pátrio. Por essa razão, não se pode matar ou cometer um assassinato contra um organismo ainda em gestação, não se caracterizando a conduta abortiva como homicídio.

Ademais, ainda que se entenda que o embrião já é considerado um ser vivo e assim digno de tutela pelo direito não se pode admitir que a única e primeira resposta para sua segurança seja o direito penal, que deve ser a última instância de intervenção nos direitos fundamentais do cidadão em um Estado Democrático e de Direito.

A maneira simplista, inadvertida e autoritária como colocado o assunto por alguns integrantes da Comissão de Direitos Humanos do Iasp, e não oficial e legitimamente pelo instituto, representa um desrespeito a todos os demais associados, pactuantes ou não das posições ali esposadas, pois ignora uma discussão séria, complexa e relevante, colocando palavras em bocas que jamais se manifestaram sobre o assunto.

Temas correlatos, como a possibilidade de nossa Corte Suprema derrogar um artigo de lei penal também são abordados no documento ora em comento, havendo aqui, outra vez mais, equívocos por parte da Comissão, já que existem sólidos precedentes do reconhecimento da inconstitucionalidade de leis penais seja no Brasil, seja no direito comparado—​ malgrado a preferência de que toda medida descriminalizadora seja procedida pelo parlamento e não pelo Poder Judiciário.

Por todos esses motivos, seja pela imprecisão técnico-jurídica, seja pela simplificação de um tema bioético complexo, seja pela usurpação de atribuições pela Comissão ou seja ainda, por fim, pelo retrocesso nas discussões sobre direitos humanos que o documento representa, é que os signatários vêm a público repudiar seu conteúdo e expressar que mencionadas afirmações não são endossadas por todos os integrantes desse importante Instituto que tem em seu Estatuto impresso com um dos seus fins (art. 2º, III), “a defesa do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos, dos direitos e interesses dos Advogados e da sociedade, bem assim da dignidade e do prestígio da classe dos juristas em geral”."

 
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