Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'É muito difícil ser a exceção que confirma a regra', diz Emicida

O rapper diz que princesa Isabel era o Michel Temer: 'Alguém que tava ali por acaso'

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Fióti, dona Jacira e Emicida na sede da empresa Laboratório Fantasma, em São Paulo
Fióti, dona Jacira e Emicida na sede da empresa Laboratório Fantasma, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress
João Carneiro

Dona Jacira não queria saber de rap. Hoje, aos 54 anos, a ex-empregada doméstica passa seus dias na Laboratório Fantasma, empresa de seus filhos Leandro e Evandro que nasceu da relação deles com o gênero musical. A companhia gerencia a carreira e grava discos de músicos da cena, além de comercializar produtos que elogiam o estilo de vida ligado ao rap.

 

Entre eles estão roupas estampadas com frases como “I love quebrada” e “A rua é nóiz”. A própria dona Jacira, no dia desta entrevista, vestia um agasalho da marca que exibia o seguinte trecho de um rap de seu filho Leandro: “Você é o único representante do seu sonho na face da Terra”.

 

“Eu não queria nem ouvir falar do rap, mesmo, não. Depois eu fui ver que as letras das músicas do Leandro são muito parecidas com o que eu falava [com meus filhos], as coisas da minha cabeça. Aí passei a gostar”, explica ela.

 

Leandro, 32, é hoje o rapper Emicida, que acaba de completar dez anos de carreira como um dos principais nomes do gênero no Brasil. Para 2019 está previsto o lançamento de um filme, produzido por Rodrigo Teixeira, sobre sua vida e sua trajetória no rap, cujo início foi marcado por suas vitórias nas batalhas de MCs das ruas de São Paulo.

 

O irmão mais novo, Evandro, 29, é Fióti, que tem sua própria carreira musical, mas se concentra hoje na gestão da Laboratório Fantasma, da qual Emicida também é sócio. Na próxima semana, ele irá à Argentina para falar sobre a história da empresa no Y20, encontro de lideranças jovens ligado ao G20. No mesmo evento, Emicida fará um show.

 

Já dona Jacira se prepara para lançar sua autobiografia em novembro deste ano.

 

A família recebeu a coluna na Laboratório Fantasma. E os dois filhos concederam uma entrevista cujos principais trechos seguem abaixo:

EMICIDA: O COMEÇO

[Minha mãe trabalhava como] empregada doméstica. Mas ela fez muita coisa, muito bico. Fez coisa de bordado, uns chinelos de artesanato. Trabalhava na feira… Mano, eu lembro da minha mãe me levando até pra cuidar de uma barraca de jogo do bicho. E eu chapava [me divertia], porque tinha um monte de páginas amarelas lá e eu ficava lendo.

 

Tinha vários telefones tipo de pizzaria, tá ligado? Você ficava imaginando o dia que você ia ter dinheiro pra pedir uma pizza. Eu ficava viajando muito nisso.

 

[Na nossa rua, na periferia de SP] nós arrumamos treta pra jogar cascalho, depois virar trilha, depois virar asfalto, depois vir o esgoto. Tivemos que fazer manifestação, protesto, teve que bater de frente lá. Onde pisássemos tinha uma treta pra resolver.

FIÓTI: O MERCADO

Esse público [que hoje consome nossa marca] sempre existiu e sempre foi ignorado. E mudaram as condições econômicas para que eles existissem também no PIB.

 

A gente vive uma época que teve globalização, tecnologia de ponta, e não tem como a gente não analisar que somos fruto de uma geração que conseguiu dar vazão a seus sonhos de uma maneira que muita gente que veio antes não conseguiu. A internet foi um divisor de águas nesse sentido.

EMICIDA: A EXCEÇÃO

É muito difícil ser a exceção que confirma a regra [da baixa mobilidade social]. Porque você luta pra mudar um sistema de dentro pra fora e é impossível que isso não gere uma série de contradições, ou coisas que podem ser interpretadas como contradições [Emicida foi criticado por internautas que alegaram que a marca dele estava vendendo um tênis estampado com a frase "Marielle Presente". O rapper afirma que nunca produziu nem comercializou o produto, e que o item foi customizado por um artista convidado por uma fabricante de calçados para uma ação apresentada em um desfile da Laboratório Fantasma].

 

É uma conta óbvia. Um mais um é dois. Se você é criativo e organizado a ponto de gerar um disco, você sabe que um disco vai ser visto pelo universo como um produto. Esse produto vai existir dentro do mercado, que vai fazer esse disco ser reproduzido, e isso vai gerar dinheiro. Em geral, é nesse momento que as pessoas, por temerem  a contradição, abdicam de ir pra linha de frente.

 

É uma coisa que a gente não tem, o temor dessa interpretação. Eu não tenho problema nenhum de ser a pessoa que grava a música e que conta o dinheiro. E acho que as pessoas que são parecidas comigo precisam perder essa culpa católica de, tipo, “Mano, eu sou rico”. Entendeu?

FIÓTI: O PODER

O estranhamento [com nossa presença em espaços de poder] é total. Em todos os ambientes que a gente frequenta. Em 90% das reuniões a que vou, sou o único negro. Não tem como me sentir parte daquele espaço. Isso é o que dá força pra gente continuar fazendo o que fazemos. Porque, realmente, você se sente um alienígena.

 

Quantas vezes a gente não vai fazer um projeto, olha um pro outro e fala: ‘Mano, a gente vai continuar mesmo? Não, a gente vai continuar, porque é importante a gente continuar’.

EMICIDA: O SUCESSO

Existe uma expectativa tão baixa com relação aos pretos, aos favelados, que as pessoas acreditam que a gente tem uma noção muito rasa a respeito do nosso negócio. Querem ensinar a gente.

 

Não entra na cabeça das pessoas que a gente sabe o que está fazendo. Que a gente tem um conceito, valores, uma história, que temos um modelo de negócios, uma filosofia, uma meta.

 

E a gente tem liberdade, que é uma parada que pouquíssimos pretos no Brasil têm. Liberdade de dizer o que a gente quiser, fazer o que a gente quiser, morar onde a gente quiser, comer o que a gente quiser. Sacou?

 

Isso é uma parada extremamente ofensiva. Muitas pessoas que discursam a favor disso, mas no momento em que veem o preto passar com um carro bacana, aí você vai ver! Mano, ninguém é racista até o negão aparecer com um carro melhor que o seu. Aí você vai ver o nariz torcer.

FIÓTI: O ORGULHO

Orgulho é uma das coisas mais interessantes dessa coisa que começa no Brasil com os Racionais [MC’s]. Essa questão de, tipo assim: ‘Pô, realmente, a gente vive nessa situação aqui, mas, porra, nós é foda. Nós seria mais foda ainda se o mundo tivesse dado outra oportunidade pra nós. Mas já que a gente nasceu aqui, a gente vai transformar essa realidade’.

 

É você transformar a sua quebrada em seu orgulho, a forma como você se veste em seu orgulho, com o que seu dinheiro pode pagar. ‘Pô, tô bem pra caralho com isso aqui’, tá ligado? Tipo: ‘Foda-se, ninguém vai rir do meu pé de barro’.

EMICIDA: O RACISMO

A verdade é que o racismo no Brasil é extremamente sofisticado. É o pior lugar do mundo nesse sentido. Porque o racismo nos Estados Unidos é muito visual. Ele é muito verbalizado, que é uma parada que a gente tá importando agora, de verbalizar, de marcar.

 

Aqui, a gente tá tão acostumado a ser ultrarracializado desde o começo, que a gente aceita que as pessoas fiquem usando a nossa etnia como uma palavra pejorativa. As pessoas ficam livremente dizendo: ‘Neguinho faz isso mesmo, neguinho gosta de fazer bosta’. E o ‘neguinho’ vira sinônimo de qualquer um. Alguém que não significa porra nenhuma.

 

A escravidão definiu todas as relações dentro da realidade brasileira. E a abolição foi um processo parcial, burocrático. É uma canetada que tinha um parágrafo ou dois, assinada por uma pessoa que não era o mandatário. Era a pessoa que tava na ocasião.

 

Se você for analisar com profundidade, a princesa Isabel era o Michel Temer. Não era o presidente. Era alguém que tava ali por acaso, não porque foi eleito e tinha capacidade para aquilo. Isso é uma situação muito profunda e que o brasileiro nem compreende! Ele agradece a princesa, tá ligado?

FIÓTI: O BRASIL

A política é uma questão essencial da sociedade e tem se destruído isso dia após dia para que o povo fique cada vez mais ignorante. Isso é o maior mal que a gente tem visto nesses últimos quatro anos de uma maneira brutal.

 

O Brasil tá com um clima de tristeza. O povo tá sem saber o que fazer, não tem onde agarrar, não tem uma coisa segura em que acreditar. Falta essa liderança e a falta desse chefe de Estado faz isso com as pessoas.

 

E a população também acreditava que esse era o rumo certo [no impeachment da ex-presidente Dilma]. Mas não dá pra jogar a culpa no povo. Porque é o povo que tá acordando cedo todo dia pra trabalhar.

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