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Descrição de chapéu Artes Cênicas

'Crucial para mim é continuar fazendo teatro', diz a atriz Esther Góes

Veterana vê 'descrédito absoluto' no Brasil e vê o palco como 'sobrevivência do ser pensante'

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Retrato da atriz Esther Góes no teatro Cacilda Becker, na zona oeste de São Paulo
Retrato da atriz Esther Góes no teatro Cacilda Becker, na zona oeste de São Paulo - Mastrangelo Reino/Folhapress

“Você, em cena, sempre parece um outro”, diz Esther Góes enquanto caminha para a saída do shopping Frei Caneca, em SP. “Nunca é fácil se aprovar.” É noite de segunda-feira (3), e a atriz de 72 anos acaba de assistir pela primeira vez ao filme “O Paciente” em uma sessão de pré-estreia. “É forte, n?”, ela pergunta sobre o longa-metragem no qual atua. 

 

Dirigida por Sergio Rezende, a produção retrata os dias em que Tancredo Neves —primeiro presidente civil eleito indiretamente após a ditadura— ficou internado, até que morreu, em 1985, antes de tomar posse. No filme, Esther interpreta Risoleta Neves (1917-2003), mulher de Tancredo. “O papel dela nesse caso é interessante”, avalia a atriz. “Ela é uma personagem muito atuante.”

 

“Existia o lado político, de que os militares entregariam o poder ao Tancredo, mas talvez não ao Sarney [vice]; o de saúde, que não podiam dizer que era tumor; e a questão dos médicos, que tinham que omitir informações nos boletins. E essa mulher funcionando como um rebatedor. Praticamente ela vai assumindo quase que o papel dele [Tancredo] de cumprir o que queriam [a transição de governos].” 

 

“Essas mulheres de políticos têm características muito incríveis, porque elas vão ficando muito sábias, entendem aquilo”, avalia Esther. “Aí aparecem Hillary [Clinton], Michelle [Obama], Cristina [Kirchner]. De tanto conviver com esquemas de poder, elas vão se apropriando e aprendendo a lidar com aquilo.”

 

Esther vê paralelo entre o filme e o atual momento do país. “Tem essa relação do bastidor e palco, o que é mostrado e o que tem por trás, quem realmente manda.” “Sabe o Cazuza? ‘Mostra a tua cara, quem é o teu sócio?’ Esse negócio do sócio é importante”, diz ela. 

 

“Inúmeras coisas que vemos agora estarrecidos já estavam acontecendo e a gente não tinha ideia da dimensão e de que isso era tão normal. Não sabíamos, por exemplo, que a Odebrecht mandava no país dessa maneira”, afirma. 

 

Contrastando com a esperança de retomada democrática  naquele 1985, porém, ela enxerga hoje um “momento de descrédito absoluto”. “É terrível a sensação de que a gente não acredita na democracia”, diz Esther, que foi presidente do Sindicato dos Artistas no começo dos anos 1980. 

 

“A gente votava tudo enganado? Aí você se sente o quê? Um bobão. Um idiota”, reflete. “Para você crer na democracia você precisa crer em gente.”

 

“Por que a gente foi tão de esquerda [na sua juventude]? Porque achávamos que aquele partido —não vou citar nomes— no qual apostávamos significava honestidade”, diz.

 

“Pra mim, o PT podia errar tudo, menos nisso. Se justamente isso falha, se não tem isso, não tem nada. E nós perdemos isso”, avalia. “Acabei citando o partido, sem querer”, diz. “Eu fui uma pessoa de esquerda a vida inteira, mas me dou ao luxo da crítica de alguém que acredita em alguma coisa e precisa discutir por dentro. Esse diálogo é necessário”, afirma. 

 

“Perder a fé é um luto forte. Em certo momento eu tive a coragem de dizer: ‘Não adianta se apoiar em um discurso e em uma teoria. Tem que ser real. Se não for real, não adianta.’”

 

“A gente tem que ter coragem de discutir as coisas crucialmente, e não simplesmente dividir o mundo em dois”, reflete ela, para quem “a arte e a política sempre foram muito conjugadas”. “E até hoje são. Porque não é possível não ser. A gente é gente, e gente faz parte disso, de todo esse jogo. Não tem como escapar.”

 

“O humano precisa da verdade. Na ditadura, fazíamos metáforas. Sempre encontramos maneiras de dizer”, afirma.

 

Nascida em São Paulo, Esther Góes teve que vencer a resistência dos pais para se tornar atriz. “Para eles era muito assustador [ela querer seguir a profissão]. Eles tinham muito medo, havia muito preconceito”, lembra. “Então eu tentava fazer teatro escondido”, segue a atriz, que cursou faculdade para se tornar assistente social. 

 

“Mas larguei tudo para fazer teatro, porque vi que não tinha nenhuma outra coisa que eu amasse tanto. Mesmo quando eu tentava. Sempre gostei muito de jornalismo também [ela foi apresentadora do canal TV Mulher], mas na hora ‘h’ a ficção ganhava. Eu seria muito infeliz se fizesse qualquer outra opção.”

 

“Não existe só o problema da família impor restrições. Depois, tem o problema de sobreviver. Só vira profissão quando você passa a ser contratada. Antes disso é um sonho.” 

 

Depois de se formar na Escola de Arte Dramática da USP, em 1969, Esther atuou no musical “Hair”, ícone da contracultura da época. “Foi o meu primeiro contrato. Fiz nove meses direto. Eram nove sessões por semana, de três horas de espetáculo. De tanto cantar, dançar, representar e engolir poeira eu saí para operar a amígdala. Não tinha mais antibiótico que resolvesse [risos].”

 

Na década de 1970, ela atuou em montagens do Teatro Oficina e fundou o grupo Teatro Vivo com o seu então marido, o ator Renato Borghi, pai de seu filho Ariel —com quem Esther mantém a Cia Ensaio Geral. Ao longo da carreira, a atriz também atuou em novelas de diferentes emissoras.

 

“[Estar ou não na Globo] para mim sempre foi indiferente. Trabalho é trabalho, não acredito muito nessas ditaduras. Aliás, acho que se você não tem esse problema é melhor, porque você vive o que for, né?”, diz. “Fazendo um trabalho legal, se não estiver todo mundo vendo, tem muita gente vendo. Não é desprezível.” 

 

Neste domingo (16), Esther termina de gravar a sua participação na série “Coisa Mais Linda”, da Netflix. “Ela se passa no Rio dos anos 1960, momento de modificações de costumes. Fala muito sobre a liberdade feminina”, conta a atriz. 

 

“Não quero fazer ‘big’ entretenimento. Não tenho interesse em fazer espetáculos cuja principal característica seja ter pessoas com grande visibilidade. O que eu busquei sempre foi essa possibilidade de interagir com a realidade, um teatro de discussão de ideias. Esse é o meu negócio.” 

 

“Mas isso é uma batalha com cada vez menos espaço”, afirma ela, referindo-se à dificuldade de pequenos espetáculos conseguirem captar investimentos. “Nem sei mais como lidar com isso. Eu chego lá [em um possível patrocinador] e dizem: ‘Mas isso vende lingerie’? Você pensa: ‘O que eu estou fazendo aqui?’ O tempo que levou nesse percurso você tirou da criação, da pesquisa. Da busca que é a sua.”

 

“A única coisa que é crucial para mim é continuar fazendo”, diz Esther, que vê o teatro “como uma resistência”. “Não vamos abrir mão do palco. Está integrado à vida humana. Isso é o que nós queremos fazer e vamos continuar fazendo”, afirma a atriz, que volta a encenar “A Estrada de Wolokolamsk” no fim deste mês, em SP. 

 

“[O teatro] é sobrevivência como ser pensante, e não só fazer o próximo trabalho chamado para fazer”, compara. “Os gregos, quando inventaram o teatro, criaram uma coisa que o ser humano necessita, sem a qual não poderia viver. E de lá até aqui, nunca morreu”, diz. “O palco é um lugar sagrado.”

 

“A cada vez que você consegue fazer um golzinho nessa realidade, fazer acontecer, é um prazer imenso. Porque é uma batalha”, afirma Esther. “Você precisa ver-se, precisa entender-se. E você vai buscar isso onde? Na arte.”

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