Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Fiz a vida por sobrevivência, instinto e reflexo, diz a atriz Nany People

Ela, que é transexual, será uma das estrelas da novela das nove da Globo

A atriz Nany People no seu apartamento, em São Paulo
A atriz Nany People no seu apartamento, em São Paulo - Marcelo Knapp/Folhapress
Bruna Narcizo

Dona Ivone, a mãe de Nany People, foi quem impediu uma surra que a atriz quase levou do pai, quando tinha menos de 6 anos de idade, por suas maneiras afeminadas. “Ela virou a mesa em cima dele e me disse: ‘As pessoas fazem com a gente o que a gente deixa, até quando a gente deixa’”, diz Nany, que é transexual.

 

Essa foi uma das primeiras vezes que dona Ivone defendeu a filha na infância. Nany lembra outro episódio. A família havia acabado de se mudar de Serrania, cidade de Minas Gerais onde nasceu, para a também mineira Poços de Caldas. “Estava no primeiro ano do primário [equivalente ao ensino fundamental] e no terceiro dia de aula não pude sair no recreio por conta da reação das crianças. A diretora chamou minha mãe e disse que eu tinha um problema. E ela respondeu que não era um problema. Disse: ‘É a condição dele. E cabe a mim, como mãe, fazer dele a pessoa mais feliz do mundo’”.

 

Dona Ivone foi atrás de uma bolsa de estudos para Nany em outro colégio. “Entrei lá e me encontrei. Era um pouco mais avançado e qualquer coisa eu tava no palco. Festa Junina, Semana da Pátria”, diz ela. 

 

“Minha mãe comprou briga com a sociedade inteira para poder me educar da melhor maneira. Não tenho história triste para contar. Tenho amigos que foram expulsos de casa e tiveram só o caminho do lado negro da força [prostituição] para poder sobreviver.”

 

Nany saiu de Poços aos 20 anos para estudar teatro em São Paulo. “Cheguei em 1985 e logo arrumei um emprego no teatro Paiol, onde fiquei 10 anos. Também trabalhava no banco Noroeste de manhã. E, no período de entressafra, para sobreviver, fazia bicos de garçonete no Café Piu Piu e vendia vestido de noivas na rua São Caetano.”

 

“Era uma época em que os gays não conseguiam alugar apartamento em São Paulo. A gente saía nas ruas e as pessoas gritavam ‘Aids’. Perdi meus grandes amigos no [hospital] Emílio Ribas, com HIV. Sou uma sobrevivente. Era muito difícil porque a gente estava lutando contra uma coisa que não sabia o que era.”

 

A atriz relembra um apartamento em que morou, no bairro Santa Cecília. “Fizeram um abaixo-assinado no prédio para tirar um morador porque ele saiu montado de mulher para ir numa festa e conseguiram que ele fosse expulso”, diz. 

 

Depois disso, “começou uma notícia de que tinha uma travesti saindo do prédio”. No caso, a própria Nany. “Teve uma reunião de condomínio, eu me montei de mulher, apareci com minha carteira de trabalho na mão e falei: ‘Boa noite, sou a moradora do terceiro andar. Me mudei pra cá faz seis meses, trabalho no teatro Paiol e faço show à noite. Esta é a minha carteira de trabalho com meu DRT como artista. Estou aqui pra dizer para vocês que vou sair assim todas as noites para trabalhar. Impeçam meu trabalho que a gente vê como fica a nossa briga na Justiça’”.

Nany diz que nunca mais falaram nada. “As pessoas levam uma acuada e retroagem. Não, minha filha, assuma sua postura! Tem que marcar seu território na vida e negociar com as perdas. Porque não se ganha sempre.”

 

“Descobri que tinha que mandar para sobrevier. Todas as cicatrizes que eu tenho no meu corpo foi por obrigação de ter que brincar de brincadeiras de menino na infância.”

 

Nany foi a primeira transexual homenageada pelos vereadores da cidade de São Paulo com o título de “Cidadã Paulistana”, em junho, no salão nobre da Câmara Municipal. “Chorei muito! No meu discurso eu disse: ‘Ninguém faz a vida acontecer conscientemente. Faz por sobrevivência, por instinto, por reflexo’”. 

 

Ela afirma que nos anos 1980 e 1990 não se era tão julgado. “Hoje tudo é síndrome, tudo dá trauma, dá câncer. Ninguém sabe trabalhar com perda e eu não vou nem entrar no campo da política. A gente emburreceu demais. O mundo tá muito chato, muito metido a besta. As pessoas estão muito nhenhenhém. Eu derrubava as barreiras sem saber que estava derrubando.” 

 

“Comecei como drag e comprei meu apartamento com dinheiro da noite. Estudei meus sobrinhos e paguei quatro faculdades com dinheiro de noite. Trabalhei muito.”

 

Nany demorou pra desvendar sua identidade de gênero. “Até então eu não sabia. Quando eu tinha 24 anos um amigo meu me disse que eu não era gay, que eu era trans. Eu não tinha comportamento de gay. Tinha 22 anos e era virgem porque sonhava com um grande amor. E na cabeça do povo eu tava mais rodada do que catraca livre. E não era a real.” 

 

“Me disseram que em Nova York tem 35 nomenclaturas de identidade de gêneros. A sigla no meu tempo era GLS. É tanta coisa agora e eu tô com 53 anos. Vamos combinar que eu não sei onde me encaixo. Quando alguém me pergunta, eu digo: ‘Vê o que você quer que tá tudo bem’. Tô ofendida e tô no lucro”, diz, aos risos.

 

Ela também comemora o fato de ter conseguido trocar seus documentos recentemente. “Conheci um advogado muito bom e agora eu assino Nany People da Cunha Santos [seu nome de batismo é Jorge].”

 

Antes da troca, que foi feita há um mês, ela conta que passou por muitos constrangimentos. “Já perdi voo porque emitiram as passagens com o nome Nany People. Já tive conta no banco bloqueada porque eu ligava e minha voz não condizia com o meu nome.”

 

Nany também não fez a operação de redesignação sexual. “Não fiz porque minha mãe pediu pra eu não fazer. Tinha 26 anos na época. Mas agora já era, né querida!? Chega uma hora em que você mais conversa do que transa.”

 

Ainda assim, ela passou por várias cirurgias plásticas. Conta que chorou na primeira vez em que um namorado tirou seu sutiã depois da cirurgia em que colocou prótese de silicone de 800 ml nos seios, em 2003. “O peito fez ‘puf’. Ele engoliu seco e falou: ‘Uau’. Aí eu desabei e comecei a chorar” 

 

Nany afirma que nunca escondeu sua condição transexual. “Uma vez saí com um japonês e depois de um tempo ele me perguntou se eu não tinha filhos. Aí eu falei: ‘Você não percebeu que eu sou genérica?’ Quando eu contei, o japonês abriu o olho”, diz ela. E dá uma gargalhada. 

 

A atriz diz que não gosta de rótulos. “As pessoas me perguntam: ‘Todo mundo que sai com você é isso ou aquilo?’ Não! Eles não saem comigo pra ter o adendo a mais. Comigo não tem esse brinde extra. Eu sou mulher, sou feminina”.

 

O teatro também foi muito importante para essa transição, ela diz. “Foi o teatro que me salvou de tudo, até da minha condição. Foi meu grande portfólio, meu grande norte, minha estrela guia. Comecei com 10 anos e não parei mais.”

 

“Como eu fiz minha carreira no entretenimento, o pessoal acha que eu saí do Kinder Ovo e nunca fui atriz. Mas eu fiz [Teatro Escola] Macunaíma, fiz Unicamp, já fui indicada como a primeira trans a concorrer em um prêmio como melhor atriz. Posso dizer que estou colhendo frutos de um trabalho no qual eu me joguei.”

 

Entre esses frutos está a personagem Marcos Paulo, que Nany representará na novela “O Sétimo Guardião”, que estreia na segunda (12) na faixa das 21h na TV Globo. 

 

Ela se emociona ao contar a primeira vez que encontrou a atriz Lilia Cabral no Projac. “Estava com o coração na boca e falei pra ela que não ia fazer a blasé. Eu disse: ‘Não sei se rezo um terço, se eu caio de joelhos, se acendo uma vela ou se chamo o Samu.’ Aí, ela me deu um abraço. E eu comecei a chorar. É um presente dos deuses do teatro [esse trabalho na Globo], com essa idade que eu tenho, na minha condição”, diz ela e chora.

 

Marcos Paulo será uma transexual amiga da personagem que Lilia irá interpretar. “Mas ela não sabe que ele acabou de fazer a cirurgia de troca de sexo. Ela está esperando chegar o amigo e chega a loira do tchan. Foi mais ou menos o que aconteceu comigo em Minas. Fui para um Natal. Estavam esperando chegar o filho da dona Ivone e chegou a Nany.”

 

Dona Ivone morreu em 2004. “Minha mãe teve câncer. O médico me chamou lá no consultório para dizer que ela não duraria um mês e meio. E ela não durou. Minha gratidão com Deus é isso. De ela não ter sofrido”, diz a atriz e chora mais uma vez.

 

Nany conta que a mãe morreu nos seus braços às 11h30 da noite. “E eu jurei pra mamãe no leito de morte dela que eu não abandonaria papai. Meu apartamento foi comprado com o intuito de ele vir morar comigo. Ele veio e ficou por dois anos. Papai era cadeirante, não tinha as duas pernas, era diabético e fumava muito. Ele aprontou demais, era alcoólatra e ficou 17 anos fora de casa. Fiz meus irmãos se aproximarem dele e ele voltou para Poços, onde morreu.”

 

Ela brinca que as pessoas a veem e pensam que ela é a autora do livro “Kama Sutra”. “Aí chega e vê uma casa modesta, com oratório, santos para todos os lados”, diz. Nany conta que, além de muito católica, é fã da Cinderela. “Tenho uma tatuagem dela, tenho coleção de imagens e fui para a Disney só para ver ela de perto. E aquela vaca existe! Digo que toda vez que eu me sinto feliz eu sinto que é a Cinderela acenando pra mim”. 

 

“Um sonho é um desejo da alma. Fiz minha vida baseada em um sonho e sempre foi me dito que meu sonho era impossível [ser atriz]. O que eu mais me orgulho na vida é de ter sido uma filha à altura da mamãe. Posso ter muitos defeitos, mas honrei pai e mãe.”

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