Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'As pessoas no Brasil estão a fim de odiar', diz o poeta Sergio Vaz

Artista vê esquerda distante: 'não podem vir de quatro em quatro anos cobrar ideologia'

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São Paulo

“Um dia um cara me falou assim: ‘Me dá um bom motivo para eu ler’”, lembra o poeta Sergio Vaz, 54, sobre um dos bate-papos que ele já realizou pelo seu projeto Poesia Contra a Violência, em que debate literatura em escolas públicas da periferia. “Respondi: ‘Quem lê xaveca melhor’. O moleque: ‘Vou comprar um livro amanhã, mano’ [risos].” 

 

“Aí uma menina perguntou: ‘E nós, as poetas minas?’ Falei: “As minas que leem não aceitam qualquer xaveco.”

 

“É coisa simples, mas que começa a desmistificar a literatura. Não posso chegar, cruzar as minhas pernas, acender um incenso e dizer: ‘Antes de escrever eu flutuo um pouco’. Como se fosse uma coisa divina”, diz o autor, que na segunda (10) completou 30 anos do lançamento do seu primeiro livro, “Subindo a Ladeira Mora a Noite”. No mesmo dia, ele recebeu o Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos. 

 

“Imagina lançar um livro de poesia em 1988 em uma região que em 1996 foi eleita pela ONU o lugar mais violento do mundo”, diz Vaz, referindo-se ao Jardim Ângela, na zona sul de SP, próximo ao Jardim Guarujá, onde ele vivia. “Completei 30 anos de carreira vindo de um lugar onde pessoas não completam 30 anos de idade.”

 

“Na época, eu não tinha tanto entendimento da humanidade. Morava na periferia e falava: ‘Por que a gente é tão pobre? Por que não tem teatro, não tem cinema?’. Tinha essa tristeza em relação ao mundo”, afirma. “Aí, quando eu lancei o meu primeiro livro, pensei: ‘Em vez de ficar reclamando, acho que posso fazer alguma coisa através da palavra’. Porque estar vivo é uma coisa. Viver é outra.”

 

O gosto pela leitura veio do pai, que se separou de sua mãe “desde muito cedo”, e com quem ele viveu. “A gente sempre morou em uma casa muito simples, mas nunca faltou nem comida nem livros. E, vendo ele ler, eu comecei a imitá-lo”, conta o autor, que estudou até o segundo grau. 

 

“Eu queria discutir literatura, mas não encontrava outras pessoas que gostavam tanto de ler quanto eu”, conta. “Era o amigo gangorra. Quando eu sentava, muita gente levantava. ‘Ih, lá vem aquele cara falar de livro novamente’ [risos].”

 

“Eu jogava bola na várzea, então tinha uma vergonha de ser esse cara. Não pegava bem. Era coisa de gente ‘fresca’. E é também, né? Para todos e todas. Mas na ideia machista que a gente tinha, eu não gostava de falar que era poeta. Dizia que fazia umas coisas de protesto”.

 

De livro em livro, ele chegou aos clássicos. Tatuou a figura de Dom Quixote no braço esquerdo. Em sua casa, há prateleiras repletas de figuras do personagem. “É o meu altar”, brinca. 

 

“Sabe aquela coisa ‘O que eu quero, o que sou?’. Moleque eu já pensava nisso. E achava que o problema estava em mim. Que eu era introvertido, depressivo. Quando eu li ‘Dom Quixote’, que fala de sonhos, eu pensei: ‘Pô, eu sou isso, cara. Um sonhador. A culpa não é minha. A culpa é desse mundo aí, que é perverso.”

 

“Dali eu começo a ter uma outra sintonia com a vida. Esse tesão de falar: ‘É o meu sonho, preciso realizar’”, diz. “Devo ao Dom Quixote, sim.”

 

Nascido em Ladainha (MG) e hoje vivendo em Taboão da Serra, em SP, Sergio é idealizador do sarau da Cooperifa, que há 17 anos ocorre semanalmente no bar do Zé Batidão, boteco no Jardim Guarujá que já foi do seu pai.

 

“Quando se fala em periferia, muitos pensam em violência. Eu penso em cultura”, diz Sergio.

 

Ele avalia que “a esquerda se distanciou” dos mais pobres. “Isso fez com que essas pessoas não entendessem mais o que nós somos, queremos e pensamos. Precisa parar de estereotipar. A periferia não é mais aquela que era há 20 anos”, diz.

 

“As pessoas não podem vir de quatro em quatro anos cobrar ideologia. Tem que estar aqui quando a gente está lutando, chorando os nossos mortos em chacinas. Em todos os momentos da vida do povo.”
“Eu tenho muito convite pra protesto. Pra churrasco, quase nenhum. Toda vez que acontece alguma coisa me chamam pra manifestação, pra xingar o governo. ‘Ah, ganhamos, vamos fazer uma festa’. Aí, não.”

 

Para ele, Bolsonaro teve sucesso porque “conseguiu colocar o ódio na água”. “Nós somos um país hipócrita, né? Que odeia índio, negro, pobre, gay. Acho que ele legitimou isso. Quase colocou na Constituição. É um presidente que tem prazer em dar más notícias.”

 

“Você vê: o messias [nome do meio de Jair Messias Bolsonaro] prega o ódio”, diz. “Tem governadores dizendo que vão mandar a polícia matar. Matar quem? Político corrupto que não é. Somos nós, os negros e periféricos.”

 

“Estamos falando de pessoas desumanas que tomaram conta do país. Acho que a fase dos corruptos passou e essa é a fase dos desumanos. É muito preocupante”, avalia. “E acho que as pessoas também estão a fim de odiar, né? Esse Brasil de que Deus é brasileiro, que a gente já sabia que não existia, agora tá todo mundo vendo.”

 

Sergio também promove sessões de cinema e a Mostra Cultural da Periferia, festival com shows, debates e leituras. “Pela primeira vez em 17 anos conseguimos apoio da Lei Rouanet”, conta ele, que captou cerca de R$ 300 mil para pagar a infraestrutura de “68 eventos na comunidade.” 

 

“O estado tem que fomentar a cultura, né? Agora, também é função dele fiscalizar quem pega esse dinheiro e ver o que vai ter de contrapartida para a população”, diz o poeta.

 

Ele lançou oito livros, sendo cinco independentes. Sobre a crise do mercado editorial, diz não ser afetado. “O sarau da Cooperifa lançou 30 livros neste ano. O cara lança lá, depois em outro sarau. A minha livraria é a minha mochila.”

 

“Quando eu escrevi o meu primeiro livro, para mim poesia era vaidade. Hoje vejo que ela é um instrumento de defesa e ataque. Tem condições de resgatar a humanidade das pessoas”, diz. 

 

“Qual é a minha recomendação pra ser um poeta? Escreve, meu filho. O mais difícil é achar quem gosta de ler. Mas, para escrever, não precisa pedir autorização pra Brasília.”

 

“Um dia eu peguei um panfleto de um garoto e agradeci. Ele falou: “Obrigado você, poeta”. Perguntei: “Pô, me conhece?”. “Você já foi à minha escola”. Era essa a fama que eu queria. Não a de ser reconhecido porque me viram na TV. Quero que me vejam na rua”, afirma. 

 

“No meu bairro, eu vendo mais livro do que o Paulo Coelho. Ele vende pro resto do mundo inteiro [risos]. Mas é por causa disso. Eu procuro ser um artista cidadão. Até porque eu não faço literatura pela literatura. Sou semianalfabeto”.

 

“Não sou um escritor que vai mudar a vida de muita gente. Nem sei o que sou direito. Tem muita gente que não considera o que eu faço literatura. Mas que também não entende que não quero fazer literatura. E sim o que eu faço. E não sei o nome disso ainda. Caso alguém queira, pode rotular”.

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