Mônica Bergamo

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'Eu arrancava as cabeças das bonecas e ficava chutando', diz a atacante Cristiane Rozeira

Nova jogadora do SPFC lembra que já foi chamada 'mulher-macho' e menosprezada por técnico

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A jogadora de futebol feminino, Cristiane Rozeira
A jogadora de futebol feminino, Cristiane Rozeira - Eduardo Knapp/Folhapress

“A minha mãe tentava me empurrar bonecas [para brincar] e eu arrancava a cabeça delas e ficava chutando. Podiam vir com o melhor brinquedo, mas eu não queria. Tudo era bola pra mim”, diz a jogadora de futebol Cristiane Rozeira, 33.

 

A atacante está na seleção brasileira desde os 15 anos e detém o recorde de maior goleadora do Brasil em Jogos Olímpicos nas categorias feminina e masculina, com 14 gols. Com a camiseta verde e amarela, marcou 83 vezes até agora. Ela só fica atrás de Marta (com 103 gols) e de Pelé (com 95).

 

Cristiane concorreu ao prêmio de melhor jogadora do mundo da Fifa em 2007 e em 2008 e ficou em terceiro lugar nos dois anos.

 

“[Jogar futebol] É a única coisa que sei fazer”, diz. “A partir do momento em que aceitei que era aquilo que eu queria fazer, isso só foi me completando cada vez mais.”

 

De volta ao Brasil desde o fim do ano, quando terminou o seu contrato com a equipe chinesa Changchun Yatai, ela foi anunciada no último dia 14 como novo reforço do time feminino do São Paulo. O clube instituiu essa data como dia oficial do Futebol Feminino Tricolor. 

 

“O São Paulo me apresentou um projeto bem bacana, bem estruturado. E eu tô aqui para ajudar a desenvolver o futebol feminino no Brasil e fazer a modalidade andar ainda mais”, conta a atleta.
Ela recebeu propostas de times de fora, como o Barcelona e o Lyon, mas preferiu ficar perto de sua família, principalmente de sua mãe, que “não está muito bem de saúde”. Cristiane já morou na Alemanha, na Suécia, na Rússia, na Coreia do Sul, na China e nos EUA.

 

“Podem me chamar de louca por ter trocado viver na Europa pra ficar aqui. Mas a minha família vem sempre em primeiro lugar.” A atleta recebeu a coluna no apartamento onde mora, em Osasco, SP.

PRIMEIROS CHUTES

Meu pai era caminhoneiro. A minha mãe, empregada doméstica [hoje, eles são aposentados]. A gente morava na casa da minha avó, de dois cômodos: quarto e sala tudo junto, uma cozinha e um banheiro. 

 

Eu jogava bola na rua até quando a minha mãe saía pra trabalhar e me pedia pra lavar a louça. Fazia um dos meninos ficar na esquina pra me avisar quando ela tivesse voltando. Aí ele gritava e eu corria pra dentro de casa. Ela olhava pro meu pé preto [de jogar descalça] e dava risada.

 

Aos 12 anos eu comecei a ir pra escolinha [de futebol]. Andava uns 50 minutos sozinha pra chegar lá —todos os dias, ida e volta. Nas férias, ia até em dois períodos. Podia fazer chuva, sol, trovoada 
—eu não tava nem aí.

 

No primeiro campeonato que eu disputei [pela escolinha], o técnico do outro time falou: “Ah, é menina, deixa ela jogar sim”. Aí ele viu que eu driblava e fazia gols e foi reclamar, dizendo que era errado menina jogar com os meninos.

 

Tinha gente que me xingava, falava que eu era a “mulher-macho” e que eu tinha que ajudar a minha mãe em casa. Eu era criança e aquilo me machucava. Quando você é adulta, ainda dói, mas você já sabe responder e se defender.

 

Com 14 anos eu comecei a jogar no Juventus [time da Mooca, em São Paulo]. Naquela época não tinha contrato, eu não recebia nada. Minha mãe tinha que me mandar dinheiro e às vezes ela não tinha.

 

As coisas aconteceram muito rápido: com 15 anos eu tava na seleção brasileira de base. Com 16, na adulta. Aos 17, joguei minha primeira Copa do Mundo. Aos 19, a primeira Olimpíada. 

DINHEIRO

Acham que eu sou rica. Não, eu não sou. Se eu fosse, eu não estaria terminando de pagar esse meu apartamento. Eu levei uns sete anos pra pagar uma casa pra minha família.

 

Meus primeiros salários sempre foram pra minha família. Na minha primeira Olimpíada [em 2004, na Grécia] eu fui com R$ 150 no bolso.

 

Até 2008, a diária da seleção [quantia que ela recebia por dia jogando no Brasil] era R$ 35. Hoje, é R$ 250. Não faço ideia de quanto os caras ganham, mas deve ser bastante, né? [A CBF não comenta valores. A coluna apurou que até a Copa do Mundo de 2018, os homens ganhavam R$ 500.] 

IDAS E VINDAS

Depois da Olimpíada de 2016 eu não queria mais jogar na seleção. Foi um ano muito difícil pra mim, perdi um pênalti, me lesionei. Tive até depressão. Isso é uma coisa que nunca contei pra ninguém. A minha mãe vai descobrir agora. Mas acho que ela sabe, né? Mãe é mãe. E, nesse ano, também terminei um relacionamento e a minha avó morreu. Explodiu tudo de uma vez.

 

Tive uma semana de férias e já fui pro Paris [Saint-Germain]. Como tava lesionada, só treinava e fazia fisioterapia. E ninguém [da CBF] entrou em contato comigo. Cansei e disse que não ia mais voltar. Mas aí conversei com a Emily [Lima, treinadora do time à época] e ela me convenceu a não sair.

 

Mas demitiram ela logo depois. Foi meio revoltante, porque  senti que não deram oportunidade pra ela. A gente até fez uma carta pedindo pra segurar ela, mas não deu em nada. Aí, fiz o vídeo [no qual anunciou a sua saída, em setembro de 2017. Ela voltou atrás da decisão em fevereiro de 2018].

 

Tenho uma coisa de falar muito, de brigar. E me disseram que eu ia servir muito mais lá dentro do que aqui fora. Lá eu tenho uma voz, tô batendo de frente o tempo todo. Não é por mim. Eu tenho 33 anos. Vou brigar pela menina que quer jogar no futuro, pela modalidade.

BANDEIRAS

Uma amiga falou pra mim: “Você sabia que o que você faz é muito feminista?”. Nunca parei pra pensar nisso. Sempre briguei por natureza. Nunca gostei da injustiça. 

 

Não abraço [outras causas], eu simplesmente vivo e vou no que eu acho que a gente tem que lutar. Se eu não for brigar por tudo isso, quem é que vai fazer isso por mim? Tem que ter respeito por religião, opinião do outro, cor, opção sexual. Até porque eu sou lésbica.

 

Já tive vontade de sair do campo e subir lá na arquibancada e pegar o cara na porrada [depois de ouvir ofensas homofóbicas e machistas]. Isso rola muito aqui no Brasil, tem muito preconceito, machismo.

 

Não tenho um partido [político], não defendo ninguém. Quero que façam as coisas direito, que resolvam os problemas. Por pior que uma pessoa possa ser, tem que ter alguma coisa boa dentro dela. 
Não votei [nas eleições de 2018], porque estava na China. Se fosse pra escolher, não teria escolhido o atual presidente [Jair Bolsonaro (PSL)]. 

FUTEBOL FEMININO

Fico doida quando comparam o feminino com o masculino. A galera só lembra da gente em ano que deu merda pro masculino. Com isso, acaba criando um atrito entre nós mesmos. Nós somos do mesmo país, caramba.

 

Acho que não temos uma manifestação das atletas tão relevante pra brigar pelas coisas. Acredito que se tivesse isso, a gente conseguiria [avanços na modalidade]. Mas também não vou ser hipócrita e dizer que as coisas não melhoraram, porque melhoraram sim.

 

Mas não dá pra brigar só uma vez. Tem que brigar sempre até entenderem que esse é o nosso espaço e ele tem que ser respeitado. Sabe, vamos lá! Se você cair, eu caio com você, você não vai cair sozinha.

 

Estamos em ano de Copa [do Mundo de futebol feminino]. Vai ser na França [de 7 de junho a 7 de julho] e vai ser difícil! Esse ano que passou não foi bom pra gente, apanhamos de todas as seleções.

 

Deve ser uma das minhas últimas competições na carreira. Seria muito frustrante se eu não conseguisse uma medalha [de ouro] depois de ter jogado tantas vezes esses campeonatos. [Pela seleção, ela acumula títulos como dois troféus do Pan-Americano, em 2007 e em 2015, o vice-campeonato mundial, em 2007, e duas medalhas de prata olímpicas, em 2004 e em 2008.]

FUTURO

Eu sou apaixonada pelo que eu faço. E pensar na hora de parar e de se aposentar é difícil, é pesado. Vou botando pra frente, mas uma hora isso vai acontecer. E o dia que tiver que parar, não sei, acho que vou ficar meio doida.

 

Tenho vontade de continuar na área do futebol, na parte de gestão. Olha, vai ter que me aturar viu? Eu seria uma técnica bem chata. Mas iria mais pro lado das crianças, pro desenvolvimento delas. Acho que teria mais paciência [risos].

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