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'Se eu fosse a Madonna, faria dueto com a Elza Soares', diz o escritor Valter Hugo Mãe

Autor português diz que o Brasil está com imagem antipática, identifica discursos piores que o de Hitler e culpa a esquerda pelo país se enforcar nessa receita

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O escritor português Valter Hugo Mãe durante entrevista em São Paulo

O escritor português Valter Hugo Mãe durante entrevista em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

Expoente da literatura contemporânea de língua portuguesa, Valter Hugo Mãe, 47, tem enxaqueca. E das fortes, que o incapacita de conviver em ambientes barulhentos e o espanta do sol e de quem usa perfumes fortes. “Há uns dez anos que isso me atrapalha todos os dias”.

Ainda que sinta pânico e até vontade de fugir quando se depara com grandes públicos, nunca fez terapia e não crê que as dores de cabeça sejam psicológicas. “Deve ser só meu cansaço”, reforça. 

Com ares de superstar, o autor foi homenageado na semana passada no Festival Literário de Araxá (MG) e relançou no Rio e em SP, pela editora Biblioteca Azul, os livros “Contos de cães e maus lobos” e “o nosso reino”. Ele ainda apresentou a pequena obra “As mais belas coisas do mundo” e assistiu à peça  “A Desumanização”, homônima de um de seus romances, no SESC Santana.

E como um português “muitíssimo abrasileirado”, afirma ser sempre acionado para justificar como o país é visto atualmente no exterior. “Infelizmente, o que tenho respondido é que o Brasil está com uma imagem antipática no mundo”.

É como ele começa a complementar a opinião do crítico Sérgio Rodrigues, que afirmou que “se escrevesse numa língua menos secreta, o Nobel de [Bob] Dylan [o cantor recebeu o prêmio Nobel de literatura em 2017] se sentiria à vontade” no colo de Chico Buarque.

“A cultura da língua portuguesa é uma cultura que tem sido periférica no mundo. Mas estou convicto de que não foi sempre assim. Sobretudo na década de 2000, o Brasil ascendeu para ser uma das nações mais charmosas do mundo. Os brasileiros que estavam emigrados regressavam entusiasticamente a um local de profunda criatividade e de uma agitação cultural artística fundamental”. 

“Hoje, há um certo desamparo em relação à identidade, à cultura e uma demora ou angústia, por exemplo, pela reconstrução do Museu da Língua Portuguesa e do Museu Nacional [ambos fechados por incêndios]. Subitamente o Brasil mudou de eixo. Mudou de caminho para uma demolição daquele certo charme. Com isso, o mundo desviou o olhar. O Brasil deixou de ser expectativa e de repente virou outra vez um problema, um país que parece colocar-se na oposição, na rejeição dos outros”.

Até mesmo a relação entre portugueses e brasileiros piorou. Em maio, a Folha divulgou que as denúncias de xenofobia contra brasileiros em Portugal cresceram 150% em um ano. “Sem dúvida é a política que está causando isso. Nas últimas eleições do Brasil, a maior parte dos brasileiros vivendo em Portugal votaram à distância na extrema direita.” 

“São brasileiros endinheirados, que puderam emigrar em excelentes condições. É curioso que vivam sob um regime de esquerda português, onde o estado social e democrático está estabelecido de forma segura —mas prescrevam aos brasileiros que não podem abandonar o país uma extrema direita. Esse paradoxo é inaceitável para alguns portugueses.”

“A imprensa em todo o mundo é sobretudo de direita. E não há imprensa nenhuma no mundo que não produza um espanto, ou um certo horror perante o que se passa no Brasil. Veja bem: quando Hitler entrou no poder, o discurso dele —embora fosse aquele um indivíduo grotesco e eventualmente o ser humano mais horrendo da história— foi muito mais moderado do que o da campanha brasileira.” 

“Quando os campos de extermínio foram criados, Hitler nunca disse aos judeus para onde eles iam. As pessoas sempre foram capturadas na ilusão de estarem indo viver num lugar onde estariam protegidas e cuidadas até que a guerra passasse. E na campanha brasileira você ouviu alguém falando isso: ‘Nós vamos exterminar vocês.’”

Mãe coloca a culpa pela ascensão da extrema direita nos governos anteriores. “A esquerda brasileira possibilitou, por meio do seu péssimo exemplo e do seu apodrecimento paulatino, que o Brasil se enforcasse nessa receita.” 

Ainda assim, diz que, com Lula e Dilma, o Brasil não esteve “nem perto” de chegar a uma situação semelhante à da Venezuela. “Esse foi um engano vendido aos brasileiros. É uma falta de respeito com os venezuelanos considerar algo assim. Só quem vive na Venezuela sabe a merda que é a extrema esquerda venezuelana.”

“José Saramago era comunista”, diz ele sobre o único escritor de língua portuguesa a vencer o Prêmio Nobel de Literatura. “Em alguns momentos, fui convidado a ser comunista, mas absolutamente não acredito no comunismo.”

Saramago é referência para Valter Hugo Mãe. Inspirado pelo estilo do autor de “Ensaio sobre a Cegueira”, Mãe ficou conhecido como o escritor que não usa letras maiúsculas —ele afirma não aguentar mais responder perguntas sobre isso—, reduz a pontuação a vírgulas e pontos finais e consegue escrever um romance inteiro sem utilizar a palavra “não”. Ele fez isso em “Homens Imprudentemente Poéticos” (2016), cuja história se passa em uma aldeia próxima ao Monte Fuji, no Japão.

“Precisei tirar a palavra ‘não’ porque, embora os japoneses tenham o vocábulo para o ‘não’, eles respondem na negativa com uma negativa um pouco mais ligeira, mais simpática, menos oponente”, explica. “Seria traduzido como ‘isso é difícil’. Imagina se você pede emprestado o carro de um amigo e o seu amigo, em vez de responder ‘claro que não’, responderia ‘isso é difícil.’”

“Significa que seu amigo vai solicitar a sua compaixão, o seu entendimento. Ele não está negando, ele está pedindo que você entenda que não deve pedir. E isso é muito bonito. É um traço da personalidade japonesa que justifica uma cordialidade, uma performance muito humanista nesta cultura recente do Japão.”

Mãe cita Jorge Amado como o primeiro autor brasileiro que leu, ainda na infância. “É muito comum encontrar estrangeiros que aprenderam a falar português não por causa dos autores portugueses. Eles queriam entender o Guimarães Rosa, ou o [Carlos] Drummond [de Andrade], ou queriam poder assistir à Fernanda Montenegro sem tradução.”

“O Brasil é um caso raro. Em 2019, ainda tem alguns de seus deuses vivos. Considere uma Elza Soares, um Caetano Veloso, um Chico Buarque, um Gilberto Gil, um Ney Matogrosso, uma Fernanda Montenegro. São pessoas estratosféricas.”

Quando perguntado sobre o que pensa de Madonna cantar em português em seu novo álbum, “Madame X”, Mãe protestou: “Como ela não foi convidar a Elza Soares? Como pode? Elza Soares só não é Deus porque Deus não está qualificado para ser Elza Soares. Eu, se fosse a Madonna, faria um dueto com a Elza Soares. Mas tudo bem, a Anitta é bonita”.

O autor perdoa a diva pop, que hoje mora em Lisboa. Antes de imergir em uma fase sonorizada por Sepultura, Ratos de Porão e Legião Urbana, ele tinha Madonna como sua estrela absoluta.

“Ela trouxe alguma agitação a Portugal. Nunca ninguém vê ela, mas tenho uma história. Eu moro um pouco acima do Porto e tenho alguns amigos em comum com Madonna. Em alguma noite, ela estava no Porto, e uma amiga me ligou: ‘Valter, você está em casa?’. ‘Tô’. ‘Estamos com a Madonna e vamos passar aí para um chá.’ Eu falei: ‘Gente, vocês têm certeza? Minha casa fica a 20 km do Porto’. ‘Ah, então não vai dar. É muito longe’, minha amiga disse. Você tem ideia de que eu quase fiz um chá na minha casa para a Madonna? Eu vou morrer angustiado de não ter feito esse chá.”

Aproximando-se dos 50, Valter Hugo Mãe se considera um menino. “Ainda hoje, minha mãe não tem respeito por mim nesse sentido. Ela não reconhece que sou um homem quase fazendo 48 anos. Me trata como se fosse um bobo de 8.”

“Com esse meu comportamento, acabei perdendo as oportunidades que tive de estabelecer relações fixas que dessem filhos. Eu não me dava conta de que não preciso amar alguém a vida inteira para ter um filho. Um dia, entendi que fui muito idiota. Pessoas normais pensam menos sobre isso. Às vezes, pensar menos dá certo.”

“A sorte do homem é que ele pode ser idiota até mais tarde. Há uma tradição de escritores mais velhos terem um filho aos 80 anos. É muito comum que isso aconteça com os escritores, mesmo os feios. Escritor feio sempre consegue uma mulher jovem.”

Por isso, mesmo “absolutamente abandonado”, Mãe diz que ainda acredita que vai encontrar uma parceira. “Escritor é um pouco excetuado no jogo comum da beleza e da atração amorosa. Não tem Tinder que ataque o privilégio do escritor. Escritor é muito sexy.”

“Se eu saio na rua, não tem ninguém que olhe para mim duas vezes. As pessoas passam e pensam: ‘Nossa, que feio’. Se vou numa apresentação de um livro, olham para mim cinco vezes. É como se eu fosse o DJ da noite, o fotógrafo da festa.” A conversa é interrompida para uma sessão de fotos. “Se ficar bonito, vou criar um Tinder.”

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