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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Vi meus versos tatuados nos braços das pessoas', diz o compositor Paulo César Pinheiro

Aos 70 anos, ele diz que é "meio tecnofóbico": não usa computador e grava fita cassete

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O compositor Paulo César Pinheiro em seu apartamento no Rio de Janeiro

O compositor Paulo César Pinheiro em seu apartamento no Rio de Janeiro Ricardo Borges/Folhapress

“É um orgulho saber que estou fazendo uma coisa que mexe com o sentimento de qualquer pessoa no planeta, independente de raça, credo e cor”, afirma o compositor Paulo César Pinheiro, 70. “Quer coisa mais bonita do que isso?”. 

“A minha música atravessou o mundo. Me espanta, por exemplo, saber que estou recebendo [direitos autorais pela reprodução de] ‘Canto das Três Raças’ [de sua autoria] em Israel. O que o povo israelita sente com essa canção? O que desperta neles? Fico pensando nessas coisas”, reflete o carioca. “É uma honra uma coisa que saiu de dentro de mim estar do outro lado do mundo sendo tocada por pessoas que são de outra cultura.”

Entre os dias 14 e 16 de junho, o artista sobe ao palco do Sesc Pompeia, em São Paulo, para seguir celebrando os 50 anos de carreira, completados no ano passado. Neste ano, ele chegou aos 70 anos de idade. Serão três shows, em que se apresentará com amigos cantores convidados.

“Recebo direito autoral do mundo inteiro”, segue ele. “Da Finlândia, da Arábia Saudita”, diz o autor de letras de músicas como “Viagem”, “Aviso aos Navegantes” e “Poder da Criação”. Ele contabiliza mais de 1.400 canções suas gravadas, feitas com parceiros como João Aquino, Tom Jobim e Toquinho e registradas por intérpretes como Clara Nunes, Maria Bethânia e Elizeth Cardoso.

 

“Todo mundo sofre de dor, de amor, de paixão, de desespero. Os sentimentos humanos são iguais em qualquer lugar. É por isso [que a música] mexe com todo mundo. Eu sou um escritor do sentimento, um observador da alma humana”, conclui. 

Há meio século, ele entrou em estúdio para a gravação profissional de sua primeira música: “Lapinha”, feita com Baden Powell e cantada por Elis Regina. A faixa venceu a primeira Bienal do Samba, em 1968. 

“Mas antes disso eu já era compositor”, lembra ele. “Ainda tem muita coisa, e eu não paro de compor. Vai acumulando. Eu vou morrer sem escutar as minhas músicas todas gravadas”, emenda o artista, que em 2003 recebeu o Prêmio Shell pelo conjunto de sua obra.

Mas não só de músicas consiste a sua intensa produção, que se acumula em pastas, fitas cassetes e cadernos guardados em prateleiras e gavetas num cômodo do apartamento em Laranjeiras, no Rio, no qual ele vive com a cavaquinista Luciana Rabello. Os dois estão juntos há 33 anos —o compositor também foi casado com Clara Nunes. 

Pinheiro já escreveu romances como “Matinta, o Bruxo”, peças de teatro como “Besouro Cordão de Ouro” e “Galanga Chico Rei” e compilações de poesia como “Poemúsica”. Em maio, lançou o livro “Figuraças”, no qual reuniu crônicas que escreveu no Pasquim sobre personagens que conheceu ao longo da vida. 

No segundo semestre, o autor ainda deve lançar “Mil Versos, Mil Canções”, obra que compila trechos de músicas escritas por ele. “Quando estou num botequim, batendo um papo, sempre alguém cita algum verso meu. ‘O importante é que a nossa emoção sobreviva’, por exemplo. Aí eu pergunto: ‘Quem fez esse verso?’ E falam: ‘É um ditado popular’ [risos].” 

“Inclusive vi muitos versos meus tatuados nos braços das pessoas”, lembra o compositor. “Pensei: ‘Porra, já que estão dizendo que é provérbio, eu vou escrever um livro de meus provérbios!’ Fui pegando, pegando, desde o meu início. Quando eu vi, tinha uns 1.200. Deixei alguns para um segundo [volume]”, diz ele, que afirma ter “16 livros na gaveta”, entre contos, romances e poemas. 

“Eu sempre fui muito compulsivo quando escrevo, nos meus tempos férteis. Porque há horas em que isso [o fluxo de criação] some. Os tempos inférteis me provocam neurose. Fico nervoso, agoniado, chato. Insuportável”, conta.

“Mas aí quando começa de novo [a ter ideias frequentes], parece que uma fonte volta a encher o rio. Vira uma cachoeira, e aí transborda. Tem épocas em que eu faço três músicas de uma vez só.”

Ele diz se lembrar perfeitamente do que chama “primeira iluminação”, referindo-se ao começo de seu ímpeto criativo. “Foi em Angra dos Reis, que é a terra da minha mãe. Tinha 13 anos. E estava diante de um mar maravilhoso, numa noite de lua cheia. Encantado. Mas não sabia o que estava acontecendo comigo, um nervoso, uma agonia, de madrugada”, lembra.

“Aí vi, em cima da mesa da sala, um bloco de anotações do meu tio, com um lápis. Alguma coisa me atraiu para aquilo e saí escrevendo um verso. Quando acabei, amenizou tudo e eu fui dormir. A partir dali, todo dia escrevia. Quando eu voltei das férias, tinha um caderno cheio de versos. Estava fazendo música sem saber, e nunca mais parei.”

O prazer da leitura veio na sequência. “Eu não lia porra nenhuma. Naquela época, era um péssimo aluno. Fugia de aula de redação, não tinha ideia de nada. Quando isso [a ‘iluminação’] aconteceu, a primeira coisa que bateu em mim foi: ‘Eu tenho que ler’.” 

“Aí peguei os jornais do meu pai para ler, descobri uma biblioteca pública. E fui sozinho. Me associei, peguei um livro, depois outro. Rapaz, isso virou um hábito. E eu fui voraz. Li tudo o que você pode imaginar até os meus 20 anos. De Sócrates a Tolstói. E Guimarães Rosa.” 

Segundo ele, é recorrente a pergunta: “Como você se inspira?” “Isso está explicado na letra de ‘O Poder da Criação’”, responde ele, que em seguida canta: “Não, ninguém faz samba só porque prefere/Força nenhuma no mundo interfere/Sobre o poder da criação/Não precisa se estar nem feliz nem aflito, nem se refugiar em lugar mais bonito/Em busca da inspiração/Não, ela é uma luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente, que acende a mente e o coração”.

“É por aí”, diz. “Fico à mercê disso. Sento de manhã cedo diante da minha mesa de trabalho, onde tem os meus cadernos, papéis, lápis, canetas e tudo. E fico ali, com aquela folha em branco me olhando. Esperando. Todo dia. E chega. Sempre chegou. Nunca me deixou na mão. Um dia vem essa luz, e aí quando eu começo é uma trovoada.” 

“Não quero racionalizar [o processo criativo] para não espantar [risos]. Parecem entidades, porque quando eu estou fazendo muita música, tem uma hora em que começa a esmorecer. Começo a me dirigir para outros caminhos, outros afluentes. Aí começam a pintar ideias de romances, ou versos de um livro, ideias para o teatro. Às vezes me baixa uma peça inteira”, conta. 

“Eu fico ali esperando, olhando para o nada. Tenho agonia, mas não pressa. De repente pinta um verso, que me traz uma melodia. Um fio vai se desenrolando de um carretel e vai embora. Aí alivia.”

Pinheiro gosta de distinguir o que considera música boa do “entretenimento”. “A música, no Brasil, se transformou em guetos. Tem um monte de garoto novo bom compondo, tocando pra cacete. Mas que não chega no seu objetivo final porque é tudo bloqueado para a indústria do entretenimento. A televisão, o que mostra, é o pior possível. Então isso que está aí não é música pra mim”, afirma. 

“As pessoas [antigamente] faziam música porque tinham o dom. Hoje, qualquer moleque que, sei lá, toca uma caixa de fósforo, que mexe com qualquer coisa, acorda compositor no dia seguinte”, diz.

“Música é um negócio muito sério. A gente nasce com o talento para fazer música, desenvolve esse talento, estuda para isso. E lê muito, pra escrever alguma coisa”, afirma ele, comparando: “Qualquer menino hoje é cronista. Tenho visto isso aí. Tem jornais que estou deixando de ler [por isso]. São redações que na minha época eram de primário. Mas hoje são cronistas. Então alguma coisa está errada nesse negócio aí.”

Pinheiro vive sem smartphones. Quem cuida de suas redes sociais, diz, é a mulher. “Quer falar comigo? Liga na minha casa. Aqui eu sou o único que atende o telefone fixo, porque todo mundo tem celular —e vivem o dia inteiro nele”, diz. 

“Vivo anotando coisas. Não uso computador. Faço música com fita cassete. Estou em outro mundo. Nada disso me faz falta. Sou até meio tecnofóbico. O computador nasceu para resolver problemas que a gente não tinha. O meu Google é o meu conhecimento.”

“Continuo lendo livros. As notícias que eu sei são pelos jornais. E quando eu tenho uma ideia, se estou na rua, eu decoro. Como sempre fiz. Aí chego em casa e anoto aquilo. O meu caderno está cheio desses papeizinhos. Não sei o que aquilo vai ser, mas sei que veio uma ideia. Em algum momento eu bato o olho naquilo e me vem um lampejo.”

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