Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'No Brasil, sofro racismo desde que eu nasci', diz Seu Jorge

Artista diz não sofrer preconceito nos EUA, onde mora, e repudia indicação de Eduardo Bolsonaro à embaixada

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O músico e ator Seu Jorge

O músico e ator Seu Jorge Adriano Vizoni/Folhapress

Em uma fria tarde paulistana, Seu Jorge, 49, traga um cigarro no terraço de um restaurante do bairro Bela Vista. Ele está tentando parar com o vício. “É uma batalha muito doida, mas agora tô com um projeto bom”, diz. 


“Se bobear, corro todo dia. Desde 2015, fiz 1.800 quilômetros. Sinto que conservo uma energia para a próxima década. Ainda tem muita coisa para implementar, muitos sonhos para realizar.” Ele se tornou reflexivo quando percebeu a aproximação do meio século de vida. 


O Brasil deixou de ser sua residência em 2013. Está no país para uma temporada de shows ao lado do músico e antigo parceiro dele, Pretinho da Serrinha, 41. A apresentação passou por São Paulo na sexta (19). Mas sua casa no Pacaembu não é cercada pelos mesmos ares da orla de Santa Monica, onde vive em Los Angeles.


Lá, não mora com as filhas —embora as três também residam na Califórnia com as mães. Mas também não desgruda delas quando as tem por perto. Flor de Maria, 16, a mais velha, mal havia desembarcado na capital paulista durante as férias da escola e se prontificou a almoçar com o pai. “Importei essa daqui hoje”, brinca o músico, enquanto a abraça.


Ela participa da conversa. Gosta de contar histórias de quando o pai é reconhecido pelos americanos. “Lembro quando estava falando com uns amigos sobre meus pais serem brasileiros e tal. Um deles perguntou se eu já havia assistido a ‘Cidade de Deus’. ‘É um filme brasileiro com gang e tal, super louco’, ele falava. Quando eu disse que meu pai estava no filme, foi tipo pa-ra tu-do. Rola um sentimento de ‘Uau, seu pai é o Seu Jorge!’”


Flor disputa com o pai para ver quem conta com mais entusiasmo as epopeias vividas nos States. “Estávamos em um cinema em…”, começa Jorge. “...Portland, Maine”, completa ela com sotaque de americana nativa.


“Fui num cinema extremamente republicano ver o filme do [diretor] Spike Lee [“Infiltrado na Klan (2018)] com minhas três meninas. Nós aplaudíamos o filme, e a galera olhava mal para a gente, cê lembra, Flor?”. “Olhavam esquisito, né?”

“Sim! É que tinha umas piadas e a gente tinha vontade de rir. Mas o filme é muito pancada, muito”, volta o artista, antes de a filha prosseguir: “A galera parece que só foi lá para ver o que o filme estava dizendo”. Seu Jorge encerra: “Parecia patrulha, cara!”


O cantor garante nunca ter sofrido racismo ou xenofobia no exterior. “Já aqui [no Brasil], desde que eu nasci.”


“Vou te dar um cenário, você vai entender. Hoje, a coisa está bem estranha, bem difícil, tudo muito dividido, enfim. Uma coisa é você chegar num shopping tipo Iguatemi, que é super seletivo e tal, e me ver andando sozinho. O cara vai ver um negro e tal, e vai pensar: ‘Ah, é o Seu Jorge’.”


“Outra coisa é eu e meu irmão. Não tem essa de ver quem é. São dois negros no shopping, entende? O segurança fica de um corredor para o outro procurando para ver quem são os dois, o que estão fazendo. É meio assim.”


Ele vê semelhanças do presidente americano Donald Trump com Jair Bolsonaro, mas aponta um avanço da mesma corrente política não só no Brasil. Cita também a francesa Marine Le Pen, o holandês Geert Wilders e o turco Recep Tayyip Erdogan. “A gente tem um quadro bem complicado na geopolítica mundial hoje.”


Reprova a indicação de Eduardo Bolsonaro à embaixada brasileira em Washington. “É um grande equívoco do presidente. É necessário uma carreira diplomática. Ainda mais na cadeira importante que é os Estados Unidos, um parceiro econômico importante, alinhado com a gente. Você tem que ter as condições, os atributos. E não é fritar hambúrguer, bicho!”


“A lei diz que não é, mas moralmente acaba se tornando nepotismo quando você entende que é uma forçação a presença desse rapaz que, pô, não tem futebol aí, não tem experiência de vida. É igual a sambista: não tem samba bom com compositor de 28 anos. Na hora de a poesia pintar, você tem que ter futebol. Pô, isso é pra rachar a cara da gente de vergonha.” 


Mesmo com as críticas ao governo, ele defende mais tempo a Bolsonaro antes de fazer uma avaliação maior. “São sete meses. É necessário ver o que será implementado e o que será conservado das conquistas que nós tivemos ao longo da história.”


Mas diz que desde que se mudou, viu a situação do Brasil piorar. “Nunca vi o nosso país tão dividido como agora. É preocupante porque, viajando o mundo, nunca percebi uma torcida tão grande por outro povo que não o nosso.”


“Lá fora, o cara pergunta: ‘Where are you from?’ [‘de onde você é?’], ‘Germany’ [Alemanha], ‘oh, Germany!’, ‘where are you from?’, ‘France’ [França], ‘oh, France!’, ‘where are you from?’, ‘Brazil’ [Brasil], ‘Brazil!?!?’. Parece que saiu gol. Existe uma curiosidade, um fetiche.”


“É que a gente tem a miscigenação mais moderna do mundo, e essa miscigenação se sente inteiramente brasileira, e não metade alguma coisa. Em qualquer lugar, o cara é half [metade] sueco, half francês, half iraniano, o cara é half alguma merda, mas aqui não.” 


“Aqui nós temos os africanos, os orientais, os índios! Nós temos os índios! Coisa que não existe mais no mundo, mas nós temos essa porra!”, empolga-se. “E querem matar com eles ainda. Os caras não estão entendendo.”


Em seus shows, Seu Jorge não costuma fazer manifestações políticas. “A música serve para colocar as pessoas em paz, em harmonia, se amando e contemplando o momento. Pô, cantar junto de um artista é uma conexão de almas, não entra nada na sua cabeça. Nem que seja ‘atirei o pau no gato’. Você canta ‘atirei o pau no gato’ e não pensa no boleto.”


Coloca o celular na mesa e aperta o play na primeira música de “The Other Side [O outro lado]”, seu novo álbum, que será lançado no último trimestre do ano. Uma orquestra se mistura a um ritmo brasileiro, e o músico contempla. 

“Eu sei que venho lutando/ Com essa vida de desvalença/ Eu sei que eu luto sozinho/ Pois ninguém nunca me ajudou”, diz a letra de “Crença” composta por Milton Nascimento, mas interpretada por Seu Jorge no disco.  



“Eu vou achar a alegria/ Eu vou achar na luz de um dia nascendo/ Eu vou deixar a minha dor imensa/ Eu vou achar meu carinho/ E vou viver só com o meu amor”, termina.


“Todas minhas referências foram negras. Pelé, Michael Jackson, Nat King Cole, Billie Holiday, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Sidney Poitier.”


“Mas na minha infância, a presença mais forte, que tinha muita relevância, que fazia muito sentido para mim, e que realmente deu vida àquele lugar comum que era nosso, devido à nossa africanidade, era o Milton.”

O álbum conta ainda com nomes como os de Maria Rita e Marisa Monte, e a turnê rodará os EUA e a Europa antes de chegar ao Brasil.


Quase ao mesmo tempo, será lançado nos cinemas do país “Marighella”, estrelado por ele. O filme já foi exibido em festivais na Alemanha, Austrália, França e Itália, onde Seu Jorge recebeu o prêmio de melhor ator.


Dirigido por Wagner Moura, o filme conta a vida do guerrilheiro de esquerda Carlos Marighella, assassinado em 1969, na ditadura militar.


Em entrevista à Folha durante as gravações, Moura chegou a comentar o fato de ter escolhido um ator “mais preto” para interpretar o personagem. “É porque quero um filme que popularize a história dele e traga um exemplo de resistência, sobretudo para jovens negros”, disse.  


Um jornal alemão chegou a citar mitificação em torno de Marighella. “Apresentá-lo como negro —e transformá-lo em alvo com uma frase como ‘matar um negro significa matar um vermelho’— é sair do conflito político e transformá-lo num conflito racista”, afirmava a crítica.

Para Seu Jorge, não há discussão: “Sendo a mãe de Marighella uma negra, ele é negro. A barriga é negra, não vai se negar a negritude desse homem, né? A mulher é negra, filha direta de escravo, da pele negra. O menino nasce dela, não é negro? É estranho isso”.


“Foi o personagem de maior relevância, com certeza. Na história dos meus trabalhos dentro do cinema, creio que esse é o meu melhor trabalho.”


Se não é astro em Hollywood, convive com celebridades mundiais. No mês passado, ele foi à festa no casamento de Zoë Kravitz, filha do cantor Lenny Kravitz, em Paris. “O primeiro date [encontro] dela com o marido foi no meu show, há três anos”, diz.


Em 2017, tocou no casamento da top brasileira Michelle Alves com o israelense Guy Oseary, empresário de Madonna. “Conversei com ela e com todo mundo que tava lá. Com o Bono [Vox], o Anthony Kiedis, o Chris Rock, o Puff Daddy, que virou amigo, virou parceiro.”


“Recentemente fui em uma festa na casa do Daddy. E aí você nunca sabe quem vai aparecer. De repente, surge um [ator e diretor] Spike Jonze com os filhos, joga as crianças tudo na piscina, aí ficam as meninas dele de DJ quebrando tudo nas pickups. São amigos legais que eu fiz.”


Seu Jorge retorna para os Estados Unidos em agosto, depois do último show de sua turnê, em Curitiba.

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