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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'A música brasileira está uma merda', diz Milton Nascimento, triste com o mundo

Com quase 77 anos, ele diz que o mundo atual não o inspira a compor, mas que nunca vai parar de cantar

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O músico Milton Nascimento toca piano em sua casa, em Juiz de Fora (MG)

O músico Milton Nascimento toca piano em sua casa, em Juiz de Fora (MG) Aluízio Barbosa/Folhapress

“A música brasileira tá uma merda”, diz Milton Nascimento. “As letras, então. Meu Deus do céu. Uma porcaria”, emenda o cantor e compositor de 76 anos de idade. 

“Não sei se o pessoal ficou mais burro, se não tem vontade [de cantar] sobre amizade ou algo que seja. Só sabem falar de bebida e a namorada que traiu. Ou do namorado que traiu. Sempre traição.”

Ele cita os nomes de Maria Gadú e de Tiago Iorc como os poucos jovens de quem gosta na atual geração de músicos nacionais. “Tem o Criolo também, mas ele não é tão novo.”

“Não sei por quê [o cancioneiro nacional está ruim]”, afirma. “Mesmo com a ditadura [1964-1985], o pessoal não deixava de falar as coisas. Ou [os censores] não deixavam ou a gente escrevia [músicas] e eles entendiam errado. Mas ninguém deixou de escrever”, conta. 

“Hoje, que está de novo quase uma ditadura, o povo não está sabendo escrever.”

Milton interrompe o raciocínio. “Você está olhando para a minha mão?”, pergunta ele ao repórter —que responde que sim. Enquanto o músico fala, seus dedos se mexem em movimentos curtos e ininterruptos, como se dedilhando um violão ou teclando em um piano. “Eu estou sempre tocando”, brinca o carioca criado em Minas.

“Um monte de gente fica achando que ele está com [doença de] Parkinson”, diz Augusto Nascimento, 26, filho adotivo e empresário de Milton. 

Os dois moram juntos em uma casa num pacato condomínio em Juiz de Fora (MG), na qual também vivem os cães John (um cane corso batizado em homenagem a John Lennon), Txai (o american staffordshire com o nome do disco lançado em 1990) e Bituquinha (o buldogue francês cuja alcunha homenageia o apelido Bituca, que Milton ganhou quando criança pelo bico que fazia ao ser contrariado). 

Foi lá, na tarde ensolarada e quente da última quarta (18), que o músico recebeu a coluna para uma conversa. 

A sala do imóvel é repleta de imagens, discos e homenagens que marcam os seus quase 60 anos de carreira. Na mesa de centro há porta-retratos com fotos de Lília e Josino, casal que o adotou e criou em Três Pontas (MG). A mãe biológica, a doméstica Maria do Carmo, morreu quando ele tinha dois anos. Lília era filha da patroa de Maria.

Ele atribui ao casal a sua iniciação musical. “Ela [Lília] tinha estudado com o [Heitor] Villa-Lobos. Inclusive não podia se falar dele na nossa casa que o meu pai ficava com ciúme, porque o Villa-Lobos tinha fama de ser mulherengo.” Foi da mãe adotiva que Milton ganhou o primeiro instrumento musical, uma sanfona.

Na parede ao lado do piano fica um retrato de Elis Regina. “Dá uma tristeza quando vejo ou ouço qualquer coisa dela”, diz o cantor, que foi amigo da cantora morta em 1982. Ela foi a primeira artista de renome a gravar uma composição dele, “Canção do Sal”, em 1966. 

Em 1967, Milton despontou para o Brasil quando a sua música “Travessia” ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção. Em 1972, lançou o primeiro disco do Clube da Esquina, grupo que reuniu Lô e Márcio Borges, Fernando Brant, Wagner Tiso, Beto Guedes e outros nomes. 

Em 1975, Milton gravou o disco “Native Dancer”, com o saxofonista americano Wayne Shorter. A parceria, segundo ele, gerou ciúmes no trompetista e ícone do jazz Miles Davis. Shorter integrou o quinteto de Davis na década de 1960. 

“Eu fui ver um show dele [Miles] em Nice [França]. Os músicos quiseram ir falar com ele. Eu disse: ‘Não vou porque ele não gosta de mim’. Mas eles insistiram. Pra não ficar mal no lance, topei”, lembra Milton. 

“Quando chegamos no camarim, o Miles expulsou todo mundo, dizendo: ‘Vocês não deviam tocar mais comigo trazendo essa porcaria de cara até aqui’.”

Milton adora contar histórias. “Só não me pergunte o ano [em que elas ocorreram] porque eu não lembro”, afirma. Uma das clássicas é sobre quando ele começou a compor, na década de 1960. Ele vivia em Belo Horizonte, para onde se mudou para estudar economia —mas não chegou a cursar a disciplina. 

“Eu e o Márcio Borges [letrista] fomos assistir a ‘Jules e Jim’ [1962], do [cineasta francês François] Truffaut [1932-1984]. Quando acabou, falei: ‘Marcinho, vamos para a casa dos seus pais que hoje vamos começar a compor’. Comecei por causa desse filme”, diz. O que o inspirou na obra foi “a história de amizade” ali retratada. 

Segundo Milton, Truffaut nunca soube disso. Mas a atriz Jeanne Moreau, que atua na obra, sim. “Em Nova York, um amigo um dia me levou para um edifício perto do Central Park e não me falou nada. Aí ele bateu na porta, e eu só ouvi alguém falando: ‘Just a minute!’. Quando abriu, era ela [Jeanne]. Eu quase passei dessa para uma melhor [risos].”

“Disse que tinha começado a compor por causa do filme. Ela falou: ‘A gente faz a arte e não sabe onde ela vai parar. Se eu signifiquei alguma coisa para você, a partir de agora você tem que fazer algo para fazer parte da vida de todo mundo’”. 

Coautor de “Coração de Estudante”, que virou hino das Diretas Já em 1985, Milton hoje prefere não falar de política. “Só [digo] que eu não estou achando nada legal ultimamente”, afirma ele, que não votou na última eleição. 

Milton foi casado por cerca de um ano com uma estudante chamada Lurdeca, em 1968. No começo da década de 1970, ele teve um relacionamento com a socialite Káritas, época em que adotou um filho, Pablo, com quem perdeu o contato. 

Ele não gosta de falar da vida pessoal. “Não acho relevante. A única coisa que tenho pra dizer é do meu filho [Augusto]. Ele foi um presente de Deus.” 

Augusto conta a história dos dois. “A gente se conheceu aqui em Juiz de Fora na minha transição da infância para a adolescência. Eu não tinha relação com o meu pai biológico. Só com a minha mãe, que sempre foi presente. E ele [Milton] era muito sozinho. Ele ficava encabulado com isso de eu não ter pai e também sempre teve o desejo de ter um filho. Depois de um tempo ele pediu para ser o meu pai.” 

“Em 2013, 2014, ele [Milton] ficou bem doente [foi internado para fazer um cateterismo], teve uma depressão, parou de cantar em 2015. Aí eu trouxe ele para morar aqui em Juiz de Fora comigo [o cantor morava no Rio]. Tava todo mundo achando que ele ia morrer. Viemos pra cá e ficamos um ano isolados de tudo.”

“Ele não ia mais cantar”, diz Augusto. “Ficou um ano e pouco sem encostar num instrumento. Mas um dia eu cheguei em casa e ele tava tocando ‘Francisco’ [música de 1976]. Perguntei se ele queria voltar, ele ficou meio sem saber, mas marcamos um show em Belo Horizonte para fazer um teste.”

“‘Semente da Terra’ [2017] era o nome do show”, acrescenta Milton, emocionado ao ouvir o filho falando. Augusto retoma: “Aí ele saiu do palco abraçado comigo mandando eu marcar mais shows. Acabou que ele botou rodinha no pé de novo e tá aí”, completa. Milton ri. 

O jovem adotou o sobrenome Nascimento oficialmente em 2017. Milton e a mãe de Augusto são amigos. “Eu não estava em um abrigo para ser adotado. Foi uma escolha nossa.”

Milton diz que está bem de saúde. “Graças a Deus. Só tenho a diabetes, mas estou legal. Estou bem de tudo”, afirma ele, que faz terapia há quatro anos. Ele completa 77 anos no dia 26 de outubro —com direito a festa. “Todo ano tem”, conta. “É tipo festa rave”, brinca Augusto. “Começa ao meio-dia e vai até as 6h da manhã. Não acaba. Ele [Milton] fica até o fim.”

No dia 15 deste mês, a União Brasileira dos Compositores vai contemplar Milton Nascimento com o Prêmio UBC. 

É sempre bom ser reconhecido”, diz. “[Na passagem da atual turnê do Clube da Esquina pelo Nordeste] Teve um cara lá em João Pessoa que escreveu um negócio lindo. Ele escreveu que apesar das coisas que estão acontecendo no mundo, ainda bem que tem eu.”

Mas Milton não anda “com muita vontade de compor”. “Estou meio triste com a vida. Não com a minha vida, mas com o geral. Quero acreditar, mas não acredito muito no mundo. Principalmente na burrice, na política”, revela. “Para compor não tenho tido inspiração, não”, conta.

Mas cantar ainda lhe dá ânimo. “Eu não consigo compor, mas gosto de cantar. Isso eu não quero parar nunca”, diz ele, emendando outra história. 

“Fomos tocar no Uruguai. A gente estava louco para conhecer o [ex-presidente José] Mujica. Chegamos lá e soubemos que ele estava louco para conhecer a gente. Fomos à casa dele. É uma coisa incrível porque você não acredita que um presidente possa morar em uma casa tão simples”, afirma. 

“Uma hora ele perguntou para mim: ‘Como está a política no Brasil?’ Eu falei: ‘Tá uma merda. Dá vontade até de parar de tocar’. Ele respondeu: ‘Não. Nunca pare de cantar. Porque a música é a coisa que pode salvar o mundo’.”

O cantor diz adorar fazer amigos. “Outro dia ele fez um Facetime [chamada de vídeo pelo iPhone] com a [cantora canadense] Joni Mitchell, o [pianista] Herbie Hancock e o Wayne [Shorter]”, conta Augusto.

“A coisa que eu mais acredito na vida, além da amizade, é na música”, diz Milton. “Quando eu faço um amigo, quero que seja para sempre. A não ser que ele não queira. Por mim, não acaba.”

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