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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Arte com viés preto sempre precisa fazer mais para ser reverenciada, diz Rincon Sapiência

Rapper paulistano lança o 2º álbum e diz que periferia faz coisas grandiosas para a cultura

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O cantor Rincon Sapiência no estúdio montado em sua casa, em São Paulo

O cantor Rincon Sapiência no estúdio montado em sua casa, em São Paulo Zé Carlos Barretta/Folhapress

O quarto inteiro treme com o som grave das batidas de rap que saem de duas potentes caixas de som. Espalhados pelo recinto estão cadernos, computador, uma grande TV, microfone e equipamentos de gravação. No chão, em uma quina das paredes, vê-se um montinho de sal grosso —para desmagnetizar energias negativas.

De olhos fechados e com a cabeça relaxada sobre o encosto da cadeira, Rincon Sapiência, 34, batuca sobre as suas coxas e marca o ritmo com os pés.

Foi naquele cômodo transformado em estúdio musical, um dos dois dormitórios do apartamento na Bela Vista (centro de São Paulo) em que o rapper mora, que ele gravou o disco “Mundo Manicongo: Dramas, Danças e Afroreps” —segundo álbum de sua carreira. A obra será lançada na segunda (25).
Encerrada a música, Rincon abre os olhos e sorri, orgulhoso da faixa ainda inédita que acabara de mostrar à coluna. “Eu fragmentei as linguagens”, diz o paulistano nascido em Artur Alvim, na zona leste da capital paulista.

“Não é um disco totalmente dançante ou totalmente combativo ou totalmente romântico. Mas ele tem tudo isso”, afirma o rapper, já na sala de estar. Sentado no sofá embaixo de um retrato dele pintado por uma fã, bola um cigarro de tabaco com pitadas de outras ervas e oferece ao repórter e ao fotógrafo —que declinam. “Que caretas”, brinca, rindo.

Batizado Danilo Albert Ambrosio, o rapper ganhou o apelido por se parecer com o ex-jogador colombiano Freddy Rincón. Ele começou a mexer com música aos 15 anos. Na juventude, teve uma banda que flertava com o rock, a Munições da 38 [em referência ao número da rua da Cohab 1, conjunto habitacional onde cresceu]. Com o tempo e por influência de irmãos, amigos e vizinhança, migrou para o rap.

Em 2009, lançou a música “Elegância”, que o colocou em evidência como parte da geração de outros rappers como Emicida, Rashid, Projota e Karol Conka. Em 2017, o seu primeiro álbum, “Galanga Livre”, lhe valeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte como artista do ano na categoria música popular. Recentemente, apresentou-se no Rock in Rio e no Lollapalooza.

Rincon gosta de misturar estilos. “Eu bebo de muitas fontes. E talvez a música que mais me cativa para ouvir e consumir não seja necessariamente o rap. Mas a minha linguagem de cantar, de pensar, de compor, a forma de atuar no palco, tudo isso é como um MC [Mestre de Cerimônias, sigla usada para artistas do hip-hop]. Por conta disso eu não abriria mão de falar que sou um rapper.”

“O problema é tentar achar um ponto e caracterizar isso como rap”, avalia. “Querer definir o rap como algo uniforme, no meu ponto de vista, é um equívoco.”

“Na amplitude do rap você vai ouvir o cara que fala das vivências da quebrada e vai ouvir o cara também falando que vai tomar o melhor drinque, vai curtir. Um não anula o outro.”

Rincon diz não ter rixa com o funk, estilo marcado por letras pornográficas. “Como artistas, vejo eles [funkeiros] como meus vizinhos”, afirma. “Tenho a minha postura, os meus valores. Mas prefiro me conectar com o mundo real e entendê-lo. A gente acaba filosofando, e é importante. Mas precisamos entender que nem todo o mundo tem a mesma formação que eu, a mesma informação que eu, e por aí vai.”

“Às vezes estou ‘de quebradinha’ [curtindo na quebrada] com a rapaziada, vou ouvir alguma coisa [música] e vou pensar: ‘Hum, isso não é tão legal de falar’. Mas consigo entender o contexto que faz a pessoa chegar nesse lugar, e que ela não necessariamente carrega um mau-caratismo.”

“Tenho mais desejo de estar com eles e de dar assistência do que de jogar pedra. Porque muitas vezes eu vejo outro gênero musical falando as mesmas coisas sobre beber ou...”

“Uma vez eu estava numa festa infantil tocando música sertaneja e rolou essas ideias [letras com conotação sexual]. E na mesma festa da escola, a diretora se posicionou falando que não gostava de funk. Então você vê: quando se trata dos ‘quebradinhas’ [pessoas da periferia] falando tal coisa, tem um peso. Quando se trata de outras pessoas, tem outro peso. A gente tem que se conectar com a realidade, não com o moralismo. E entender o contexto das coisas.”

Rincon vê com olhar crítico o debate sobre a qualidade da música brasileira atual. “Parte dela que é entendida como boa são as baseadas na música brasileira que era feita antes. O lance de ter muita instrumentação, arranjos mais complexos, acordes mais abertos. E isso é rico pra caramba, porque você estuda para entender esses artifícios e possibilidades, e se tem tal conhecimento, vai aplicar. É bonito, né?”

“Mas quando se faz isso, é inspirado no que era feito antes. Agora, quando faz um bregafunk, por exemplo, você tá inventando uma parada nova, sabe? Em Recife tem o brega deles. Aí teve o tecnobrega, que é de Belém, uma versão mais eletrônica do brega. Aí Recife, com essa linguagem mais eletrônica, produzida ali no computador pelos beatmakers, pegou muitas influências do funk, acrescentou e já virou uma outra parada.”

“Então a periferia de Recife criou um gênero novo dentro da música brasileira. Eu acho isso rico, você fazer algo novo, que nunca existiu.”

Ele cita o próprio funk como exemplo. “Tem um nome que é ‘gringo’, tem influências de outras coisas, mas hoje em dia a sonoridade do funk é a sonoridade brasileira, que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Inventaram.”

“Quando faço uma avaliação sobre a música brasileira, vejo muita coisa nova. Quando a bossa nova surgiu, ela foi reverenciada porque era nova. Não era nem o jazz nem o samba, mas tinha um pedaço de cada um. Isso chamou a atenção, e todo mundo bateu palma.”

Ele também cita danças surgidas nas periferias, como o passinho do Romano e o passinho dos Maloka. “Você falando em linguagem corporal, isso é incrível. São pessoas que não fizeram balé, que não estudaram academicamente a dança.”

“A periferia tem fomentado coisas grandiosas no que diz respeito à arte e não tem a devida reverência”, diz. “A arte quando tem esse viés preto, de periferia, sempre precisa fazer mais para ser reverenciada, né?”

“Mesma coisa se pegar um artista que compõe incrivelmente bem, tem uma obra foda, e na hora em que você vai conversar com ele, fala: ‘Mas e a violência policial e não sei o que que está acontecendo na periferia?’ Parece que só temos essas coisas para oferecer. E no que diz respeito à arte, que é o que a gente tá fazendo num nível grande, não tem a reverência devida muitas vezes.”

“Várias pessoas representam várias coisas por si só, pela sua existência”, diz. “Às vezes vai além do falar sobre [um assunto]. Praticar, ser, já tem peso.”

“Falando da parte em que eu trabalho: dentro da minha existência, eu componho. Para eu compor, tenho que ter uma paleta de palavras. Para eu ter uma paleta de palavras, preciso ler. Para produzir, eu preciso saber sobre música”, diz. “Isso me coloca em um lugar que, nessa parte da produção musical, tem poucos pretos.”

“Mas eu tenho anseios de representar outras coisas também que não são só a bandeira da pretitude. Eu represento isso porque eu falo disso e porque eu sou isso. Mas ainda tenho um pacote a mais de coisas que posso compartilhar. Existe algo a mais dentro da minha existência como Rincon Sapiência. E isso você pode aplicar em qualquer outro artista que muitas vezes é estigmatizado, [para quem] se pergunta as mesmas coisas.”

“E quando você tem a oportunidade de conhecer a pessoa, você começa a trocar ideia e vê: ‘Essa pessoa sabe muito de música’. Ou: ‘Sabe de história pra caralho!’ E muitas vezes dão poucas oportunidades para elas falarem sobre. Porque enxergam como uma bandeira. Eu também trabalho um pouco para tirar esse estigma”, diz. “Se você está dentro de algum recorte, as pessoas muitas vezes querem te ver como uma bandeira, não uma existência.”

Vivendo há cerca de um ano na Bela Vista depois de outros bairros da região central, Rincon pensa em voltar para a zona leste. “Aqui não é um bairro em que você vive. Você usufrui dele, de ter lugar para comer, mercado 24 horas, estar próximo do aeroporto. Mas vivenciar as pessoas, o cheiro e o ritmo do bairro... Aqui tem muita gente, mas tá todo mundo no seu mundo particular. Meus momentos de vivência, de conversa, de estar na rua, tudo isso que acontece, quando acontece, é na quebrada.”

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