Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Eu não tinha nem ideia do que era Natal em família', diz Vinícius, adotado aos 15

Antes uma das únicas crianças que não saíam do abrigo onde vivia, o adolescente agora celebra as festas com sua nova família

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O adolescente Vinícius Pereira (o segundo, da esq. para a dir.) com a mãe, Roseli, o pai, Taner, e o irmão, Davi, na casa onde vivem, em Sorocaba (SP) Eduardo Knapp/Folhapress

​Por quase metade de sua vida, o Natal foi para Vinícius uma noite solitária. As mais de 20 crianças e adolescentes com quem dividia o teto desde seus sete anos —um abrigo no bairro do Tatuapé, em São Paulo— saíam para festejar com seus padrinhos, pessoas que se dispõem a acompanhar o desenvolvimento de uma criança de alguma instituição mesmo sem adotá-la. Vinícius nunca foi escolhido por ninguém. Ficava aos cuidados de uma educadora e na companhia da irmã, cinco anos mais velha e que também vivia na instituição (a mãe deles morreu e o pai perdeu o pátrio poder). Eles eram os únicos ali.

Em 2017, as coisas começaram a mudar. A dona de casa Roseli, 46, e o supervisor de logística Taner Pereira, 49, que já tinham dois filhos biológicos, iniciaram um processo para adotar Vinícius, que conheceram por meio do programa Adote um Boa Noite. E ele pôde passar um Natal com aquela que seria, no futuro, a sua família. Além de adotar um adolescente de 15 anos, o casal ajudou a irmã dele —que acabou se mudando para Sorocaba, onde a família vive, e se casou na semana passada.

Há 12 dias, a adoção foi oficializada. A família, que celebra seu primeiro Natal com o mais novo filho de papel passado, recebeu a coluna em sua casa na cidade de Sorocaba (SP).

UMA IDEIA FIXA

Taner (pai): “A gente sempre falou sobre adotar, mas teve um dia em que fui ao mercado e voltei para casa com aquilo na cabeça. Perguntei para ela quando a gente começaria a ver isso e ela me falou: ‘Vem cá ver uma coisa’.”

Roseli mostrou a ele uma imagem com rostos de crianças que havia acabado de receber pelo celular do Adote um Boa Noite, projeto do Tribunal de Justiça de SP que estimula a adoção de crianças e adolescentes maiores de sete anos ou com doenças congênitas. O casal viu na coincidência um sinal de que havia chegado a hora.

Roseli (mãe): “Demos entrada no processo de adoção em outubro de 2017. Como eu falei que queria adoção tardia, achei que seria coisa rápida. Mas o mês passou e ninguém entrou em contato. Eu ainda tinha a foto e decidi pesquisar. O Vinícius era uma das pessoas que apareciam nela”, diz, com a voz já embargada. 

Foram sete dias entre o primeiro contato com a Justiça e a data em que o buscaram.

Vinícius: “Deu um friozinho na barriga. Fiquei nervoso, mas de um jeito bom”, diz, enquanto entrelaça os próprios dedos feito novelo de lã, tamanha a sua timidez. “Antes de dormir eu pedia muito a Deus para me dar uma família, aí chegou a hora em que Ele atendeu. Eu não tinha nem ideia do que era Natal em família. A gente dançou, cantou e comeu muito também.”

Roseli: “Na primeira noite a gente fez ‘montinho’ [quando as pessoas se jogam sobre a outra] nele. ‘Você queria um boa noite? Então toma um boa noite’.” A mãe faz cócegas no filho, que abre um sorriso largo e inunda a sala com suas gargalhadas.

O DIA DA ADOÇÃO

Roseli e Taner têm dois filhos biológicos: Vinia, de 22, e Davi, de 18. Antes de incluírem Vinícius na conta, o abrigaram por dois anos sob uma guarda provisória que era renovada de tempos em tempos.

Roseli: “Se eu tive um parto, foi naquele dia com o procurador [de Justiça, que encaminhava a adoção e entrevistou o casal]. O tanto que me apertaram!”

Vinícius: “Eu falei que estava gostando bastante [de ficar com o casal] e ele falou de aumentar a guarda mais um pouco. Eu cortei ele na hora e falei: ‘Não. Eu quero hoje’.”

Taner: “Da adoção pra cá, parece que houve um estalo.” 

Roseli: “Ele já me chamou de mãe”, diz, antes de ser interrompida pelo próprio choro. “No dia em que saiu a adoção, ele acordou e falou ‘bênção, mãe’. Antes ele falava ‘meu pai’ e ‘minha mãe’, sobre nós para os outros. Mas não nos chamava de nada.”

Vinícius: “Desde o começo eu tentava, mas não saía.”

Nesse meio tempo, o casal ajudou a irmã mais velha de Vinícius, hoje com 20 anos. Quando eles se aproximaram do adolescente, ela já tinha feito 18 anos e havia sido obrigada a sair do abrigo, chegando a passar noites na rua. Morou numa casa alugada pelo casal e depois com eles. Casou-se na semana passada e segue morando perto do irmão.

MEU JEITO DE AMAR

Taner: “As pessoas dizem ‘parabéns, você transformou a vida dele’. Mas ele também transformou a nossa. A gente aprendeu a ter paciência, humildade, a entender o que ele passou e o problema dele”. Vinícius foi diagnosticado recentemente com Transtorno do Desenvolvimento Intelectual. 

Davi (irmão): “Desde pequeno, eu queria um irmão que jogasse bola e videogame comigo todo dia. Ele não era assim, mas agora já me chama para fazer as coisas. Até tenho ido mais à igreja por causa dele.”

Roseli: “E a vitória de ver ele sorrindo? Ele não é bom em falar o que sente, mas demonstra. Ontem ele me abraçou do nada e falou ‘obrigado por me tirar do abrigo’.”

Davi: “Ele é aleatório”, diz provocando o irmão. “Outro dia eu estava na cozinha e ele me disse do nada: ‘Davi, eu já falei que te amo hoje?’. Eu respondi que não e ele disse ‘te amo’.” 

TALENTO

De classe média, a família mora numa casa com acabamentos por fazer. Se a argamassa exposta nas paredes incomoda Roseli, nas mãos de Vinícius vira tela para seus desenhos. Fã de Mauricio de Sousa​, transforma seus amigos, família e a cachorra, Dora, em protagonistas de suas HQs. Até o padre da paróquia que frequenta virou desenho.

Vinícius: “Uma professora falou que a minha história é igual à do filme ‘Um Sonho Possível’. Só que ele foi para o esporte e eu, pro desenho.”

Roseli: “Faltou ter dinheiro e aquela casa enorme da [atriz] Sandra Bullock. Coragem a gente teve. Na escola, já chamaram ele de ‘negro e adotado’. Eram crianças, depois se desculparam. Eu ensino que ele é negro, é adotado e ponto. Ele tem que ter orgulho.”

MALA PRONTA

A vida dos Pereira seria um conto natalino se não fosse a realidade da convivência. O primeiro ano da nova composição familiar foi duro. Vinícius era indisciplinado na escola e introspectivo em casa. Em agosto de 2018, colocou suas roupas num saco e fugiu para um vizinho. O motivo? Ficou sem celular por mau comportamento. Roseli e Taner cogitaram devolvê-lo e procuraram ajuda no fórum.

Taner: “Daqui até lá eu fui chorando. Olhava para trás pelo retrovisor meio de canto porque ele não podia me ver emocionado”, conta, com os olhos marejados. “Ele conversou com as psicólogas por bastante tempo e disse que queria ficar com a gente. Falamos sobre família ter hora para comer, passear, estudar e assistir televisão. Daí pra frente, foi só graça.”

Roseli: “É um processo confiar e se abrir. No começo ele tinha vergonha de falar, foi até por isso que teve a primeira briga na escola. Mas a gente ensina filho a andar, a falar. Eu vou ensinar ele a falar.”

CORTA PARA 2019

Davi: “A vida com ele está bem mais animada, mais Vinícius.”

Taner: “As pessoas ainda perguntam o que tínhamos na cabeça porque já tínhamos dois filhos grandes.”

Roseli: “Mas não é na cabeça, é no coração. Quem tem amor não pensa nisso.”

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