Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Se não está desconfortável hoje, você tá bem errado, diz Maria Casadevall

Atriz critica momento político do país e diz que vive processo de 'revolução pessoal' depois de raspar o cabelo

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A atriz Maria Casadevall em uma praça no centro de São Paulo

A atriz Maria Casadevall em uma praça no centro de São Paulo Eduardo Knapp/Folhapress

A atriz Maria Casadevall ri da lembrança de quando ensaiava para uma de suas primeiras peças da carreira, no apartamento de sua mãe, no centro de São Paulo, há uma década —quando tinha 22 anos. Ela tinha que se enrolar em um plástico filme, desses usados para cozinhar —era parte de seu figurino. “Eu ficava pelada, com uma bota rosa de salto 20, fazendo vários movimentos”, conta ela, enquanto gesticula no ar como se estivesse se enrolando em um papel invisível.

“O prédio da minha mãe é bem colado no da frente. Então, no meio desses ensaios, eu olhava pra fora e via várias luzes acesas. Os vizinhos não entendiam nada. E eu não tava nem aí.”

Maria conta que, no fim da temporada da peça —“Hipóteses para o Amor e a Verdade”, da companhia Os Satyros—, deu de presente a bota rosa, que era parte de seu figurino, a Rayana, uma moradora de rua trans que foi assistir a uma sessão do espetáculo e ficou “fissurada” pelo acessório.

E Rayana não é a primeira moradora de rua que cruzou com a vida da atriz. Ao longo da conversa com a coluna, —que começou em uma praça e migrou para um café no centro de SP— Maria foi abordada por dois homens, em momentos diferentes, aos quais chamou pelo nome e perguntou como estavam.

“Sou muito andarilha. E como nasci e morei minha vida inteira aqui no centro, eles me conhecem desde sempre. Até antes de eu fazer trabalhos na televisão”, explica a atriz. 

Um deles, Luiz, questiona o rabisco vermelho que ela tinha no rosto. “Você gostou? Eu que inventei”, respondeu. “Eu tô sempre tão a serviço de uma outra história, que quando posso ser um pouquinho eu, parece que quero extravasar”, diz ao retomar a conversa.

Ela se emociona ao falar de Thiago, um dos amigos que fez na rua quando tinha 19 anos. E conta que essa relação foi de “muitas fases”, principalmente por conta do vício que ele tinha com crack. 

“Teve uma época em que a gente tava muito próximo um do outro, ele passou um Natal lá em casa. É uma relação de muito amor e respeito. Mas também tiveram processos difíceis, de recaída, de ele sumir...”, diz, com a voz embargada.

“Eu sempre morro de medo”, segue, enquanto leva as mãos ao rosto para secar as lágrimas. “Quando ando nas ruas e vejo alguém dormindo no chão, fico muito mal. É muito louco como uma cidade pode te impor tanta indiferença. Além de todo esse absurdo, tenho pânico de que um desses corpos seja o do Thiago.”

Maria conta que faz algum tempo que não vê o amigo, mas que mantém uma ajuda em dinheiro a ele todo mês. “Ele me ensinou e me ensina muito. Gosta muito de ler, tem consciência política e histórica. E ele dá os pulos dele [risos]. Acompanha meu trabalho, até comenta algumas cenas.”

Aos 32 anos, sendo dez de carreira, já passou por teatro, televisão e cinema. “Exercer a profissão de atriz me dá um senso de pertencimento e me coloca num estado de presença que poucas coisas me colocam.” Ela conta que é muito reconhecida nas ruas, em alguns momentos mais do que em outros —“parece que você sai de casa com um néon”, brinca.

Em 2019, estreou a segunda temporada da série “Ilha de Ferro” (Globoplay), que se passa numa plataforma de petróleo, e a primeira de “Coisa Mais Linda” (Netflix), de temática feminista. Conta que foi reconhecida por uma mulher na rua, em Londres, e diz que pensa em se projetar internacionalmente —mas que não tem um “fetiche hollywoodiano”. 

Há pouco tempo, gravou a segunda temporada do seriado da Netflix, que deve estrear em 2020. Ela conta que puxou um canto de parabéns ao ex-presidente Lula no meio do set. “Comecei a cantar e as pessoas me acompanharam. Aí, me perguntaram pra quem que era. E eu respondi, ‘ué, pro Lula’! [risos]. A grande maioria vibrou e algumas pessoas ficaram quietas”, continua.

E foi no último dia de set, na madrugada em um encontro com amigos, que decidiu raspar o cabelo —uma vontade antiga que se transformou ao longo do tempo e se impôs agora.

“A pergunta a que mais tenho respondido é se fiz isso para algum papel. Não, é pra minha vida mesmo. Meu corpo está sempre a serviço de uma outra história. É uma investigação de mim por mim mesma, de desconstrução de padrões sociais, culturais. Entender que eu posso estar em contato com a minha feminilidade com a cabeça raspada na máquina zero. É um processo de revolução pessoal.”

A certa altura da entrevista, o rapper Emicida, que estava passando pela rua, parou para cumprimentar a atriz. “Tô correndo. Faço fono aqui do lado e agora já vou pra outro lugar”, disse ele, apressado. “A gente se encontra por aí”, disse ela.

E retoma a conversa. “É bom fazer parte desses projetos que estão dispostos a dialogar e a propor discussões. Mas não sou ingênua em relação à natureza desses projetos. Eles não têm, nessa origem, o processo de transformação mesmo da sociedade. Eles podem, eventualmente, propor discussões que são interessantes e são esses projetos com os quais eu escolho me envolver dentro dessa indústria. Mas é uma indústria produzindo entretenimento.”

“De dois anos pra cá, as minhas escolhas [profissionais] têm sido cada vez mais conscientes. Antes, elas eram muito intuitivas. O contexto social e político de hoje está colocando todos nós numa berlinda, né?”, diz. E reflete: “Como é que você ocupa o seu lugar no mundo? Faz sentido você fazer o que você faz? É assim que você quer continuar?”. 

Algum arrependimento na carreira? “Zero. Respeito muito a história que me trouxe até aqui. Respeito quem eu era no momento em que fiz essas escolhas. É importante a gente ser generosa com quem já fomos um dia.”

Ela diz que, inclusive, já deixou de se envolver com produções que “não eram compatíveis” com os valores que defende. “Estamos num momento em que, se não contribui, atrapalha.  E isso é aplicável a todas as situações”. E continua a reflexão: “Esses últimos anos foram um grande filtro nas relações. E as lágrimas vão chegando... Eu já fico...”, diz, e respira fundo. “Pra mim foram muitas rupturas caras. Mas, ao mesmo tempo, os encontros ficaram muito mais potentes.”

“E tem o desconforto também. Se não está desconfortável no mundo hoje, tu tá bem errado. Tem alguma coisa bem errada, você não entendeu alguma coisa”, afirma, criticando o momento político do Brasil atual.

Ela avalia o governo do presidente Jair Bolsonaro como “o absurdo e a violência ganhando representatividade no poder”. No Carnaval, saiu em um bloco de rua em SP com os seios à mostra com a frase “Ele Não”, mote feminista contra Bolsonaro, escrita na altura do colo —uma foto dela nesse momento viralizou nas redes. 

“Foi uma manifestação pessoal, eu estava com os meus amigos curtindo um bloco. E o acontecimento tomou uma proporção que eu não esperava e que num primeiro momento me assustou. Mas, depois, me abriu para uma série de possibilidades”, conta. Ela sofreu críticas de mulheres que não se sentiram representadas, se desculpou e se propôs a refletir sobre isso

“Existiu esse diálogo com mulheres negras, gordas, trans –todas as que se sentiram excluídas nessa fotografia. Elas trouxeram uma série de provocações que me fizeram refletir. A gente precisa abrir a nossa mente para as discussões.”

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