Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Descrição de chapéu Cinema

'É crime de lesa-pátria o que estão tentando fazer com o cinema', diz Barretão

Aos 91 anos, produtor diz que a 'indústria criativa vai salvar vidas no século 21'

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O produtor de cinema Luiz Carlos Barreto em seu escritório, no Rio

O produtor de cinema Luiz Carlos Barreto em seu escritório, no Rio Ricardo Borges/Folhapress

“Dá tempo de tomar um vinhozinho?”, pergunta Luiz Carlos Barreto, 91, à sua mulher, Lucy, 87. “Não, Luiz Carlos. Vamos nos atrasar! É pra subir só pra pegar o paletó”, responde ela, que fica no carro e pede ao motorista que acompanhe o marido até o apartamento —para ele não enrolar. 

Chove no Rio, e o trânsito na noite daquela quinta de dezembro está caótico. Mas eles conseguem chegar no horário à sessão de estreia do documentário sobre Barretão, produtor de mais de 50 filmes (como “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos”) e pai de Bruno, Paula e Fábio, que morreu em novembro de 2019

O veterano recebeu a coluna em sua produtora na tarde daquele dia. “É grande o questionário?”, perguntou ele antes de a entrevista começar. Mesmo que fosse, seria inútil. Ele falou por cerca de duas horas praticamente sem a intervenção de perguntas, emendando raciocínios. Como em um plano sequência.

Leia um resumo:

Nascido em Sobral, no Ceará, Barretão tem 91 anos
Nascido em Sobral, no Ceará, Barretão tem 91 anos - Folhapress

LESA-PÁTRIA

O cinema é parte da indústria do entretenimento e do lazer. Isso é hoje um dos setores da economia mundial que mais cresce. O Brasil tem tudo para ser um dos líderes dele. Temos uma mão de obra artística e técnica que foi fruto de anos de investimento e está nos padrões internacionais. Isso não pode ser jogado fora. É um crime de lesa-pátria o que estão tentando fazer com o cinema brasileiro.

A Ancine (Agência Nacional do Cinema) era para ser uma agência reguladora e de fiscalização. Não de fomento. 

Nós passamos o ano de 2019 sem Cota de Tela [que garante espaço para filmes nacionais nas salas de cinemas brasileiros]. A lei obriga que o presidente da República, todo ano, assine um decreto modificando a cota ou mantendo como ela está. E isso não foi feito de 2018 para 2019. Um presidente que deixa de cumprir o que está na lei é crime de prevaricação. 

O [Michel] Temer [na Presidência à época] tinha que ser punido, muito embora não fosse a concepção pessoal dele. Foi o ministro da Cultura dele [Sérgio Sá Leitão]que o induziu. Sá Leitão, um paraquedista que caiu no setor audiovisual. 

Mas o outro decreto, da nomeação do Conselho Superior de Cinema, ele assinou —colocando representantes da indústria internacional no lugar de representantes do cinema brasileiro. Num conselho cujo objetivo é o desenvolvimento do cinema nacional. 

Existe outro problema. A Ancine está parada há três meses [das quatro vagas da diretoria, apenas uma está preenchida]. A atividade [cinematográfica] está sendo sufocada por inanição. Não sei se é o projeto [do governo] ou se é pura irracionalidade. 

O fato de [o Conselho Superior de Cinema] ter voltado para a Casa Civil não foi uma tentativa do governo de botar [o cinema] sob controle. Fomos nós [do audiovisual] que pedimos que fosse cumprido o que está na Medida Provisória do governo Fernando Henrique [que cria a Ancine e atribui o conselho à Casa Civil].

INDÚSTRIA CRIATIVA

Nós, como empresários de cinema, não podemos agir como um grêmio estudantil. Em matéria de geração de empregos, a nossa indústria é campeã. E são empregos que não serão afetados pela tecnologia que desemprega. Porque ela [a indústria audiovisual] é criativa. A máquina, o algoritmo, não tem talento criativo. Você não vai prescindir [do humano] pra fazer filme. A indústria que vai salvar empregos e vidas no século 21 é a criativa. 

IDEOLOGIA

O público é quem vai dizer se aceita ou não as ideias que estão num filme. Agora, o mecanismo que é instalado para se fazer os filmes, ele não pode prejulgar que filme vai estar na tela. O que tem ideologia são os filmes. É território livre —e tem que ser mesmo.

PASSADO

O maior período do cinema brasileiro foi o da Embrafilme. Em pleno governo militar do Geisel. Porque era um governo nacionalista e tinha um cineasta de sucesso à frente da Embrafilme, que era o Roberto Farias. Alcançou patamares que nunca mais alcançou. E nenhum cinema do mundo tinha alcançado o nível que nós tínhamos.

Nos anos 1970, o Geisel ordenou que o presidente da Motion Picture [Association of America, que representa estúdios cinematográficos de Hollywood] não poderia ser recebido nem por contínuo de ministério. O cinema americano tem um lobby mundial. E faz muito bem, porque tem uma indústria capaz de abastecer os mercados.

Ô, CAFAJESTE

Eu vivi intensamente a ditadura militar. Tive contatos nos porões do SNI [Serviço Nacional de Informações]. Um dia, recebi a notícia de que o [Mário Henrique] Simonsen [ministro da Fazenda do governo de Ernesto Geisel (1974-1979)] tinha ido aos Estados Unidos para negociar dívida externa, aquela coisa de taxação de álcool brasileiro. Para conseguir vantagens, ele teve que fazer concessões na área do cinema.

O Simonsen incluiu os insumos de cinema como supérfluos, igual alimento para cachorro. Para economizar divisas. Falei com o Jece Valadão, que era muito amigo do [João] Figueiredo [que na época era chefe da SNI e depois sucedeu Geisel na presidência]. Falei: “Jece, nós estamos fodidos, porque agora importar é supérfluo. Não pode fazer filme”. Aí o Jece: “Vamos falar com o Figueiredo. Vai comigo?” 

O Jece ligou para o SNI, um capitão chamado Gay atendeu o telefone. “Ô, Gay, teu chefe está aí?”. O cara falou: “Ele está assistindo a um amistoso da seleção”. E o Jece: “Quero falar com ele pessoalmente”. O capitão: “Venha para cá, você sabe que ele te recebe”. Fomos. 

Chegando lá, o Figueiredo estava sentado com aquela barriga grande, estufada, assistindo ao jogo. Não tirou nem o olho da televisão. “Ô cafajeste, senta aí para a gente conversar”, ele disse [Jece era chamado de cafajeste em referência aos papéis que fez no cinema]. O Jece chegou, bateu na barriga do Figueiredo e falou: “Tá barrigudo, porra! Desse jeito como é que você vai comer as mulheres?”. Aí o Figueiredo: “Para, cafajeste”. Aí o Jece: “Eu trouxe aqui o Barreto, que está com a notícia de que o teu ministro, o Simonsen, vai cagar com o cinema brasileiro. Conta aí pro Figueiredo, Barreto”. 

Eu mostrei, e ele falou: “Esse Simonsen é um merda mesmo. Um entreguista. Vou abrir um processo para investigar esse troço”. Um mês depois, [o Figueiredo] falou [ao Jece]: “Diz pro teu amigo Barreto que já está tudo resolvido. Revoguei aquele negócio lá, agora vocês podem importar. Mas não faz esses filmes de merda que estão fazendo aí. Faz só filme de sacanagem, ô Jece” [risos]. 

O produtor Luiz Carlos Barreto no quintal de sua produtora, no Rio
O produtor Luiz Carlos Barreto no quintal de sua produtora, no Rio - Ricardo Borges/Folhapress

FÁBIO BARRETO

[Lucy chega à sala onde a entrevista ocorre para lembrar Barreto que eles têm que sair]. A morte dele [Fábio], é evidente, foi uma tristeza. Mas foi um treinamento de dez anos [acostumando-se a viver sem o filho, que ficou em coma durante esse período]. Ele teve um acidente [de carro] e nunca mais voltou.

[“A falência dos órgãos começou em julho e agosto”, conta Lucy. “Foi terrível, porque a gente sempre tinha esperança. Todo dia eu achava que ia aparecer alguém com uma solução”, segue ela, que criou uma programação musical para o filho ouvir enquanto estava inconsciente —a 5ª sinfonia de Beethoven era tocada toda manhã para que Fábio distinguisse o dia da noite. “Também gravamos saudações para ele, que renovávamos todo mês.”]

BRASIL

O Brasil é um país amalgamado, onde a mestiçagem se consolidou. Ela tem um poder de energia, de transformar o Brasil, como dizia Darcy Ribeiro, num novo modelo civilizatório. Não é patriotismo. O homem brasileiro pensa multiplamente. O nosso querido e grande arquiteto Lucio Costa dizia assim: “O Brasil não tem vocação para a mediocridade”.

OLAVO DE CARVALHO

É muito triste ver o Brasil sofrendo um ataque de pensadores como esse Olavo de Carvalho. Isso é uma loucura! É um desabamento [risos]. Uma catástrofe que está ocorrendo. Precisamos eliminar isso.

TEMPESTADES

O Brasil não é preto no branco. Não é promiscuidade, é uma sociedade permissiva. Eu chego aos quase 92 anos de idade sentindo como se tivesse 50 [risos], vivendo as mesmas... Já entendi que essas nuvens negras que desabam sobre o Brasil de vez em quando —e eu já vi muitas—, sempre a gente atravessa e sai no céu azul do outro lado.

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