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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Hoje você é obrigado a achar que um MC qualquer é igual a Pixinguinha', diz Eduardo Gudin

Compositor é autor de 250 músicas, foi parceiro de Paulinho da Viola e é dono do Bar do Alemão

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“Você não pode comparar Dorival Caymmi a nada do que está aí”, diz o violonista e compositor paulistano Eduardo Gudin, 69. Ele faz um paralelo entre a música brasileira do século 20 e a atual. “Se disser que Caymmi é melhor que não sei o quê, falam que você é um retrógrado, reacionário, tem medo do novo. É uma evidência [que é melhor], mas não pode nem discutir.”

“Então você é obrigado a achar que um MC qualquer é igual a Ernesto Nazaré. A Pixinguinha. A Ary Barroso. A Noel Rosa. A Chico Buarque. A Tom Jobim. Não é! É óbvio que não é. Mas você não pode falar. Então todo mundo tem medo de entrar nessa discussão”, diz ele. 

O compositor Eduardo Gudin na praça Pôr do Sol, em São Paulo
O compositor Eduardo Gudin na praça Pôr do Sol, em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

Autor de cerca de 250 músicas e parceiro de nomes como Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, Gudin contempla o fim de tarde sentado à sombra de uma árvore na praça Pôr do Sol, na zona oeste de São Paulo. A terça (21) está ensolarada, a temperatura está amena e os cabelos brancos do músico se mexem para onde o vento fresco sopra. 

“Não é uma discussão sobre o mérito [da produção musical atual]. Não é para criticar. É chato criticar colega. Esse é um papel para crítico de música”, diz. “É sobre analisar a sociedade. Sinto falta da discussão. As pessoas são censuradas a discutir.” 

“A nossa sociedade não consegue mais produzir a música que produziu no século 20. A vida de hoje é meio contra um tipo de música que o cara leva mais tempo para aprender, para aprimorar”, reflete. “Se eu começasse hoje, talvez não seria músico. Não sei se o que tem aí ia me interessar.”

Gudin começou a tocar violão com 12 anos de idade. “Ouvi o Paulinho Nogueira tocando num programa de televisão. Lembro até hoje da música: ‘Agora É Cinza’. Falei: ‘Vou querer fazer isso da vida’. Aí pedi um violão para o meu pai”, lembra ele.

Seu pai trabalhava na Shell, e “pelo menos uma vez por semana chegava com um disco novo”. “Tinha um piano em casa. Minha mãe tocou muito. As partituras que tenho [do repertório que pertenceu a ela], se ela tocou aquilo, tocou muito bem. São coisas difíceis”, diz. 

“Eu tinha uma relação com música fora do padrão de qualquer criança. Quando chegou o ‘Chega de Saudade’ [disco de estreia de João Gilberto lançado em 1959], eu tinha oito anos. Não parava de ouvir aquilo. Principalmente o lado B, que é o do ‘Bim Bom’. E eu já ouvia muito Elvis Presley, Bill Haley e Seus Cometas.”

Aos 16, Gudin foi ao hotel onde Elis Regina, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli estavam hospedados —e se apresentou para eles. “Pedi para me escutarem. A Elis gostou, e eles me levaram para tocar no ‘Fino da Bossa’”, conta, referindo-se ao programa musical exibido na TV Record de 1965 a 1968. “Era uma das últimas edições. Tive o prazer de tocar lá.”

“Só que eu era menor de idade! [risos]. Chegou o juizado de menores e disse que eu não podia estar lá. Fiquei desesperado! Aí o Jair Rodrigues [parceiro de Elis na apresentação do programa] me pegou pelo braço e falou para os caras: ‘Daqui vocês não vão tirar ele!’”, lembra. 

Aos 18, Gudin compõe “Gostei de Ver”, que fica em terceiro lugar do festival da Record. No mesmo ano de 1969, ele inicia a parceria com o letrista Paulo César Pinheiro na música “E Lá Se Vão Meus Anéis”, que é gravada pelo grupo Os Originais do Samba e vence o Festival Universitário da Canção. Gudin e Pinheiro tornam-se amigos a partir dali. 

“Naquele tempo, as pessoas copiavam muito o Chico Buarque. E vem um Paulo César, novinho, com a minha idade, que não tinha nada a ver com o Chico. Falei isso pra ele. Claro que ele se sentiu elogiado”, conta, sobre o encontro que deu início à relação dos dois. 

“A gente tem essa coisa de amizade da adolescência”, diz ele. “[Nos encontrávamos] na pracinha Pinto Peixoto, lá em São Cristóvão [no Rio]. O Baden Powell morou lá. Depois o João de Aquino. Essa pracinha era maravilhosa. Tudo adolescente brincando de fazer música.” 

“Você está de carro aí?”, pergunta Gudin ao repórter da coluna. A resposta é negativa, e ele propõe andar até a sua casa, que fica próxima à praça. 

“Eu faço o que sei fazer”, diz, enquanto desce a rua residencial Pascoal Vita. “Tem os caras que querem se adaptar. É uma bobagem, né? O Tom Jobim sempre fez a música dele. Só não continuou porque morreu”, segue. “Fazer música moderna. Pra quê? Deixa para o filho fazer.” 

Virando à direita na rua Agostinho Bezerra, o assunto muda para momento político do Brasil e do mundo. 

“O ser humano está sucumbindo à internet. Essa coisa da direita, os caras saíram do armário, né? Pessoas horríveis. E tem essa classe média estranha que não se incomoda. A maioria só se importa se o Lula está preso, aí tá tudo certo. O resto, não importa”, reflete Gudin, que “votou no Lula até para presidente da federação de jogo de dama”. 

“Não tem importância para essas pessoas que um cara está falando que a Terra é plana. A sociedade está assimilando tanta coisa ruim, tanta bobagem. O Brasil tá num nonsense. A ignorância tomou força. Antes, para o cara ser líder, tinha que pelo menos ter um megafone, subir num caixote e falar com as pessoas. Hoje, põe lá qualquer coisa na internet e vai pro mundo inteiro. É um poder”, diz.  

Para ele, a palavra polarização vem sendo usado com falsa equivalência. “Você não polariza com Hitler”, diz, como exemplo. “Polarização seria se o presidente do Brasil fosse, sei lá, o [jurista] Ives Gandra Martins, um cara de direita, que polariza com a esquerda do PT. Aí tá polarizado. O Bolsonaro não polariza com nada. É a escória humana.”

“E ainda tem a figura do Olavo de Carvalho. Esse cara deveria ser extirpado. A gente tá vivendo uma coisa de louco.”

Neste ano, Gudin deixou de ser dono do Bar do Alemão, tradicional reduto boêmio e de música brasileira na zona oeste da capital paulista. Ele virou sócio do espaço em 2003. “Mas vou continuar na direção artística”, diz. Segundo ele, o bar, que anunciou o seu fechamento em outubro do ano passado, vai reabrir a partir do dia 30 deste mês, no período da tarde.

“A noite mudou”, emenda o músico. “Tudo é mais cedo. Não existe mais alguém na rua às 5h ouvindo música, a não ser a molecada, em balada. Aquela coisa de bar, pra conversar [está mais escassa].” Na avaliação dele, a violência, a lei seca e a crise afetaram a vida noturna. “O bar já não estava mais dando dinheiro. Mas pra mim o problema [que o levou a deixar o negócio] não é dinheiro. É a exaustão. Eu não estava dormindo. É muito problema.” 

A caminhada segue para a padaria Letícia, na rua Natingui. Gudin pede um pão de queijo e um suco de mamão com laranja. A coluna propõe que ele reflita sobre os 70 anos de idade, que completará em 2020. “Não serve pra nada ficar velho. Não tem a menor vantagem ser velho no Brasil. Talvez no Japão, onde o velho fica ditando regras”, brinca. “E eu ainda estou legal, né? Meus pais não me deixaram dinheiro, tem que me deixar a saúde”, afirma —eles morreram com 95 anos cada. 

Gudin estudou dois anos de engenharia, mas largou o curso. “Eu já estava na profissão [de músico]. Dava muita aula de violão”, conta. “Mas eu sempre tive uma certa coisa paralela como produtor musical. Porque só a música não dava direito, assim, para poder não fazer mais nada. A produção cultural ajudou muito a me manter”, diz ele, que foi programador de rádio, diretor de eventos na TV Cultura e é um dos idealizadores da orquestra Jazz Sinfônica. 

Ele lembra de um fase em que passou dificuldades financeiras, na década de 1980. “Eu estava com uma filha pequena [Gudin é pai de Joana e Elisa]. Mas nunca comentei nada na frente dela, para que ela não deixasse de gostar de música. Se ela visse eu falando o que eu tinha passado, de repente podia não gostar. Eu ia tirar a música dela. Isso acontece. Já vi”, conta.

“Pra mim, tudo o que eu fazia sem ser o meu trabalho [tocar música] era tempo perdido”, diz. “Eu podia ganhar bem, ter um ambiente maravilhoso. Mas eu achava que estava deixando de estudar uma escala de violão. E uma hora numa escala que eu preciso treinar vale mais do que qualquer coisa. Às vezes, estou meio confuso, com problema pra resolver, e a hora que eu paro pra tocar… Isso é que me dá o... [prazer]”, diz. “O prazer que dá você ser o que a vida te proporcionou.” 

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