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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Poesia sempre foi o antídoto para o veneno da opressão', diz Roberta Estrela D'Alva

Pioneira do slam, atriz, que perdeu a voz aos 30 anos e teve de reaprender a falar, será curadora de sala no Museu da Língua Portuguesa

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A atriz Roberta Estrela D’Alva em São Paulo

A atriz Roberta Estrela D’Alva em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

A atriz Roberta Estrela D’Alva folheia as páginas do doutorado que vai defender em fevereiro. O tema, diz, é uma mistura de memória e voz. Ela para em uma das páginas e aponta com o dedo indicador para um texto. “Escrevi esse poema quando me machuquei.” 

E recita: “A garganta é a gruta que guarda o som/ A garganta está entre a mente/ E o coração/ Vem coisa de cima, vem coisa de baixo/ E de repente, um nó!/ E o que eu quero dizer/ Às vezes, acontece um negócio esquisito/ Quando eu quero falar, eu grito/ Quando eu quero gritar, eu falo/ O resultado? Calo”. 

Quando tinha 30 anos, perdeu a voz completamente por conta de um cisto nas cordas vocais e teve que ser operada. “Passei pelas fonos mais ortodoxas até os tratamentos mais holísticos”, diz. Teve que ficar um mês em silêncio. “E eu falo pelos cotovelos.”

Diz que, depois da cirurgia, teve que reaprender a falar. Hoje, aos 42, trabalha diariamente com a voz. Ela é uma das precursoras das batalhas de poesia no país, o slam.

Roberta conversou com a coluna em sua casa, na zona oeste de SP, no primeiro sábado do ano —dois dias antes de embarcar para a Bahia, onde passaria 20 dias de férias. 

“Não bebo café no dia a dia. Fico muito plugada!”, diz, e, em seguida, desajeitadamente, deixa transbordar de uma xícara a bebida que preparava. Momentos depois, derrubou outra vez, sujando levemente o sofá da sala. 

Nascida Roberta Marques do Nascimento, ganhou de presente o nome artístico de uma amiga, aos 13 anos. “Ela falava que, quando eu me tornasse atriz, e eu sempre soube que queria ser atriz, teria que usar esse nome. E acabou pegando.” 

O sonho de subir aos palcos vem da infância —“sempre fui uma criança hiperexpressiva”. Filha de uma dona de casa e de um velejador (que aos 62 anos concluiu uma volta ao redor do mundo sozinho), conta que cresceu ouvindo música em sua casa.

Ela tem um irmão cantor. Sua irmã, que também era cantora, morreu de câncer aos 16 anos, quando Roberta tinha 18. Apesar do ouvido “insuportavelmente afinado” da família, Roberta nega o rótulo de cantora.

“Tô com uma raiva da Wikipédia! Alguém colocou lá que eu sou cantora e estou tentando tirar [a informação] e não consigo! Eu sou atriz. Uma atriz que canta, escreve, apresenta, porque o teatro me dá a possibilidade de estudar muitas coisas”, diz, enquanto gesticula no ar. “Mas a arena em que você me joga e eu me viro é o teatro.”

“Sou uma atriz-MC. Que é quando você junta o narrador do teatro com o mestre de cerimônias, que é o porta-voz da cultura hip-hop.” Ela é uma das fundadoras do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, coletivo paulistano referência na fusão do hip-hop com o teatro, que celebra 20 anos em 2020. 

O “poetry slam” surgiu na década de 1980 em Chicago, nos Estados Unidos. Além de uma competição de poesia falada, muito ligada a temas sociais, é também uma espécie de microfone aberto, em que as pessoas têm três minutos para falar e serem ouvidas. 

Ela conta que se aproximou do slam pela primeira vez no começo dos anos 2000, quando viu filmes americanos sobre o tema, como o documentário “SlamNation” (1998). Em seguida, viajou aos EUA para pesquisar e voltou determinada a trabalhar com isso no Brasil.

“Menina, o primeiro slam [que organizou] lotou. Veio gente do norte, sul, leste e oeste.” Em 2011, participou da Oitava Copa do Mundo de Slam, em Paris, na França, e ficou em terceiro lugar. Hoje, conta, existem 211 comunidades de slam espalhadas em 20 estados do Brasil —em SP, são 50.

“E o que o slam reivindica? É criar encontros das pessoas, dos corpos, das ideias, do embate. É um jeito novo de debater política. O slam é uma estratégia pra um período em que a escola militar é prioridade. A poesia sempre foi o antídoto pro veneno da opressão. Porque ela é essa máquina do tempo, às vezes lendo um verso você consegue se transmutar. Ela tem esse poder. E é por isso que ela é esmagada, censurada.”

Roberta se emociona ao contar de um encontro que reuniu cerca de 800 pessoas na praça Roosevelt, no centro de SP. “Numa segunda-feira à noite, juntar 800 pessoas numa praça é foda! Ninguém deu dinheiro pra essas pessoas irem, ninguém fez propaganda, elas foram espontaneamente ouvir poesia. Se isso não é um levante, eu não sei o que pode ser.”

Em 2019, a competição de poesia falada foi uma das atrações mais aplaudidas da programação principal da Flip —pela primeira vez, a Festa Literária Internacional de Paraty abriu espaço para a modalidade. Roberta foi uma das apresentadoras da noite.

Ela assina, junto com o escritor Marcelino Freire, a curadoria da sala Falares, dedicada à cultura oral e à diversidade da língua portuguesa falada no Brasil, no Museu da Língua Portuguesa. A instituição, que está fechada desde 2015, quando foi atingida por um incêndio, deve reabrir em junho deste ano. Segundo ela, a sala reúne dez painéis audiovisuais com pessoas de todo o país, de idades e classes sociais diferentes, contando suas histórias.

Outra coisa que aguarda para este ano é descobrir se o programa que ela apresentava desde 2016, “Manos e Minas”, da TV Cultura, vai voltar ao ar —ele foi interrompido em junho. 

“Eles falaram que ia reprisar [o programa] até março e que aí seria retomada [a produção]”, conta. “Era o único programa do Brasil, talvez do mundo, que tinha esse espaço para o rap e para a cultura da periferia. Como é que você tem uma juventude negra, consciente, bicha, trans, falando na TV? É uma afronta pro governo.”

A atriz diz que há perseguição à cultura popular no Brasil. “Assim como tem com o funk, teve com a capoeira, a umbanda, o hip-hop. A ideia é diminuir espaços. Quando o presidente [Jair Bolsonaro] fala que livros [didáticos] têm muita coisa, o que ele tá falando é que precisa retirar espaços reflexivos. E eles podem ser num livro, numa rua, num baile.”

Para ela, o atual governo federal é, do ponto de vista da poesia, “sem poética alguma”.  “Olha o que tá acontecendo com a cultura. Esse secretário [Roberto Alvim]. Não tem condição. Eu não gosto de falar o nome, porque não quero dar ibope ou bater palma pra louco dançar. Custou bastante pra eu ter os meus 42 anos, a minha fala, pra agregar safado nela”, afirma.

Ela acredita que o cenário atual é reflexo histórico de diversos fatores, sendo os principais não ter sido “passada a limpo a ditadura militar e não ter ocorrido reparação histórica para os quase 400 anos de sistema escravocrata no Brasil”. “Se a paz não for para todos, não será para ninguém”, diz.

“Tenho feito meu posicionamento político por meio da arte e, claro, em situações extremas você tem que escolher lado. Tenho amigos que são corajosos e se candidatam, entram na política partidária. Não me vejo fazendo isso, mas se precisar... Vamos ver.” 

Em 2019, o espetáculo “Terror e Miséria no Terceiro Milênio - Improvisando Utopias”, do núcleo Bartolomeu, recebeu um prêmio especial da APCA  (Associação Paulista de Críticos de Artes) por seu posicionamento político diante da realidade do país. “Pra mim, esse prêmio é o prêmio. Caralho!” 

E reflete: “Quando eu tiver 80 anos —e espero viver muito!—, quero olhar pra trás, falar para os meus netos... O que eu fiz pelo meu país? Onde eu tava no momento da luta? Do lado de quem? Fazendo o quê? Eu tava lá, lutando com poesia”.

Ela olha para o relógio em seu celular. “Meu Deus, já são 15h? Eu falei pra você que não sou acostumada com esse negócio”, diz, enquanto aponta para o café. “Sabe o que é isso? É isso, ó, drogas. Por isso que eu não tomo. Liguei no 220 [volts].”

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