Em uma varanda da Biblioteca Mário de Andrade, no centro da capital paulista, Arnaldo Antunes, 59, marca a batida de um funk com o pé. Cheia de ruídos, a música vem do aparelho de som de um transeunte da praça Dom José Gaspar, vizinha à instituição.
Foi naquela biblioteca, num andar acima da varanda e 39 anos atrás, que a banda Titãs do Iê-Iê se apresentou pela primeira vez num projeto musical chamado “Idade da Pedra Jovem”, que dava espaço a novas bandas paulistanas.
Anos depois, o grupo tiraria do nome a troça com a jovem guarda e se tornaria uma das bandas de rock mais populares do país. Mas em 1981 Arnaldo tinha apenas 21 anos de idade e via o país caminhar lentamente rumo à abertura política, depois de quase duas décadas de ditadura militar.
“Chegamos a ter uma música censurada quando começamos com os Titãs. Fomos proibidos de cantar [a canção] ‘Bichos Escrotos’ ao vivo porque tinha o palavrão ‘vão se foder’. A gente não cantava esse verso, mas o público todo cantava”, relembra o ex-integrante.
Em dezembro do ano passado, Arnaldo viu um programa que trazia o clipe da música “O Real Resiste”, faixa-título do disco que lança em 7 de fevereiro, ser vetado pela estatal TV Brasil, sob o comando do governo de Jair Bolsonaro. A letra traz versos como “Miliciano não existe/ Torturador não existe/ Fundamentalista não existe/ Terraplanista não existe.”
“É uma música que confronta a situação política atual. Claro que foi uma forma de censura, mas não é uma censura absoluta. Para quem quiser ouvir a música, ela está nas plataformas de streaming e nas minhas redes sociais”, afirma.
“Eu nunca gostei da canção de protesto que se vitimiza diante da opressão. Sempre gostei de afirmar a potência individual do espaço artístico como discurso dentro do mundo. Isso tem uma dimensão utópica, mas é também uma afirmação do que a gente quer que seja.”
O que é o real? “São as pessoas que respiram, comem, transam, estudam, querem ter a sua casa e seus direitos trabalhistas e civis protegidos, querem comida, diversão e arte”, define, fazendo referência à música ‘Comida’, que compôs em parceria com os ex-companheiros de Titãs Marcelo Fromer e Sérgio Britto.
“Quando eu vejo uma manifestação de rua pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso, acho isso uma loucura. Talvez falte uma consciência e o mínimo de dignidade nas relações entre as pessoas. A sociedade no Brasil está muito doente”, diz.
“O futuro de uma nação não se faz com violência, se faz através da cultura, da educação, da pesquisa científica. Não há futuro de uma nação e nem presente se não for através disso”, segue.
O cantor dispensa rótulos à esquerda ou à direita. Prefere definir-se como artista, democrata e libertário. “Não dá para você separar o mundo assim [em dois polos], há muitos tons de cinza entre o branco e o preto.”
Por outro lado, defende que a disputa política só possui um lado radicalizado, representado pela direita. “Essa coisa de voltar à época da Guerra Fria e ver uma ameaça comunista que não existe no Brasil é uma ficção para se criar um antipetismo e se eleger o que a gente está assistindo.”
Prestes a entrar para o clube dos sexagenários —Arnaldo faz aniversário em setembro—, diz estar tranquilo com o avançar da idade. A crise mesmo veio com os 40, que o levou a procurar a psicanálise freudiana. “[Envelhecer] Envolve ganhos e também perdas de irresponsabilidades e de inconsequências que o jovem tem”, diz, às gargalhadas.
Reservado, não é muito afeito a compartilhar sua vida pessoal e dar exemplos dos hábitos que deixou para trás. Limita-se a citar o cigarro, que largou pelo zelo com que hoje cuida de sua saúde. “Já faz uns meses que estou sem fumar e estou achando que agora vai. A gente vai chegando numa idade em que [o fumo] não combina mais, vai tirando a energia.”
Mas não é como se sentisse o peso da idade, insiste em reafirmar. “Claro que tem perdas. Agora vou ter que começar a usar óculos para ver de longe também e estou tendo que fazer cada vez mais exercício físico para me manter em forma. Ao mesmo tempo, gosto de conviver com essa fase da vida no sentido da experiência, da maturidade”, conta.
Questionado sobre sua percepção a respeito de drogas ilícitas, Arnaldo, que em 1985 passou quase um mês detido por porte de heroína, afirma ver como “uma questão individual o ser humano usar ou não qualquer coisa que altere a sua consciência.”
“As pessoas têm que saber o que estão consumindo, seja Coca-Cola, agrotóxico, maconha ou outra substância, álcool ou tabaco. Você tem que saber que vai comer uma fruta e foi usado agrotóxico nela”, afirma.
“As pessoas acabam consumindo cegamente sem saber nem dos benefícios nem dos malefícios por conta de uma desinformação causada por um preconceito que prefere obscurecer determinados temas como sexo e drogas. E agora também o rock and roll, que está sendo satanizado.”
A referência é ao maestro Dante Mantovani, nomeado para presidir a Funarte (Fundação Nacional de Artes) pelo ex-secretário de Cultura Roberto Alvim. Em vídeo, ele afirmou que “o rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. E a indústria do aborto alimenta uma coisa muito mais pesada, que é o satanismo”.
Recentemente, Arnaldo Antunes fez uma imersão na tribo indígena dos Yawanawás, no Acre. Duas das canções de seu novo álbum, “Língua Índia” e “Dia de Oca”, foram compostas na aldeia.
“É muito louco que existam governantes como Bolsonaro, Trump e outros no mundo que questionem a existência de aquecimento global, que se neguem a manter os acordos internacionais para a preservação do meio ambiente. Parece que são cavaleiros do apocalipse e que o lado suicida da humanidade está querendo acelerar o fim do mundo.”
“Você fica asfixiado pela realidade, como às vezes a gente se sente ao ficar olhando as notícias no Twitter”, diz o cantor, que afirma acompanhar as redes sociais apesar de não fazer postagens.
“É como se você não tivesse nem tempo de reagir a alguma coisa porque já vem outra. Uma maneira de não se sentir asfixiado por essa realidade é dizer ‘é só pesadelo e depois passa’. Eu sou, de certa forma, um otimista incorrigível, apesar de toda a barra pesada que a gente está vivendo.”
Apesar de sua postura, ele rejeita a máxima de que artistas, da MPB ao sertanejo, tenham que se posicionar. “Essa obrigatoriedade acaba sendo também uma forma de cerceamento da liberdade individual. Acho que as pessoas têm o compromisso de se posicionarem de alguma forma porque são membros da sociedade, mas não porque você é artista ou deixa de ser.”
“Não vou ficar criticando uma pessoa que era libertária e se tornou reacionária”, diz, sem citar nomes, sobre seus contemporâneos na música que hoje flertam com o conservadorismo. “Vivemos num estado democrático, laico, vamos defender a convivência com a diversidade. Tem gente que muda de um jeito ou de outro. Tem gente que é ateu e se converte, vira evangélico.
Para a turnê de “O Real Resiste”, prevista para abril, Arnaldo Antunes prepara um show intimista, com apenas voz e piano. Mas pensar no lançamento do novo disco, mesmo que seja o 18º de sua carreira solo, ainda lhe provoca frio na barriga, diz.
“A graça está nessa emoção de se aventurar. Sempre antes do show tem uma energia especial, uma concentração, uma insegurança, tudo isso faz parte. E é isso que a gente transforma em potência quando está em cima do palco.”
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