Mônica Bergamo

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Não tinha como sonhar porque não via mulher jogando, diz ex-capitã da seleção Aline Pellegrino

Ex-atleta que jogava futebol escondido do pai trabalha por igualdade de gênero no esporte e diz que feminismo não é bandeira: 'É algo natural'

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A ex-jogadora de futebol e atual diretora de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol, Aline Pellegrino, no Pacaembu 

A ex-jogadora de futebol e atual diretora de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol, Aline Pellegrino, no Pacaembu  Marlene Bergamo/Folhapress

A ex-jogadora de futebol Aline Pellegrino começa a conversa dizendo, em tom de brincadeira, que sua primeira lembrança relacionada ao esporte é de quando ainda estava na barriga da mãe. “Nasci em 6 de julho de 1982. Um dia depois da tragédia na Espanha”, diz, referindo-se à derrota do Brasil para a Itália na Copa do Mundo daquele ano. 

“No dia 5, minha mãe não estava no hospital esperando eu nascer. Ela estava no churrasco com todo mundo da família, com o Brasil inteiro assistindo. Foi a primeira Copa que eu vivi in loco”, diz, entre risos. 

A ex-zagueira vestiu por nove anos a camiseta verde e amarela —sete com a braçadeira de capitã. Com a seleção, ganhou medalha de prata na Olimpíada de Atenas, em 2004, foi vice-campeã mundial na China, em 2007, e medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos no Rio, em 2007.

Pendurou as chuteiras em 2013. No mesmo ano, foi técnica por quase um semestre do time feminino do Vitória de Santo Antão, em Pernambuco. Atualmente, é diretora de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol, onde trabalha desde 2016. É responsável por ter criado o primeiro campeonato feminino em categorias de base, o Paulista sub-17, o primeiro festival sub-14 para meninas e a primeira peneira, processo seletivo de atletas, da federação. 

Aline, 37, começou a jogar profissionalmente aos 15 anos, mas desde os 6 já brincava de bola na rua. “A primeira coisa [que eu lembro] é de jogar com os meninos numa ladeira perto de casa. E é aquela coisa bem anos 1980: tá ganhando? Joga na descida. Tá perdendo? Joga na subida. E põe a pedra e o chinelo pra fazer o gol.”

Ela cresceu na zona norte de SP. Filha da professora aposentada Madalena Aparecida Pereira Pellegrino e do vendedor autônomo Francisco Antônio Pellegrino, tem um “irmão de sangue”, Leandro, e três que foram adotados pelos pais quando tinha 26 anos: Sara, Katherine e Matheus.

A ex-jogadora conta que conviveu muito com Leandro durante a infância, “até que ele foi pra turma do videogame e eu pra do futebol. E não tinha nenhuma outra menina comigo.”

Aline relembra a decisão do governo Getúlio Vargas de proibir a prática do futebol feminino, que ficou vigente de 1941 até 1979 —a modalidade foi regulamentada em 1983. “Quando eu comecei a ir pra rua, não tinha nenhuma menina. Era eu e mais uma e olhe lá. E o texto dessa lei é muito absurdo, fala do corpo da mulher, que é frágil. Comecei a jogar cinco anos depois da modalidade ter sido reconhecida. E o que é isso comparado a quase 40 anos de lei?” 

Ela afirma que não tinha o desejo de se tornar jogadora profissional. Desde sempre, queria ser professora de educação física. “Hoje, as meninas sonham. Mas a gente não tinha como [sonhar], porque a gente não via mulher jogando. Me perguntam direto: ‘Quem você viu jogar que te inspirou?’. Ninguém. Eu não me via ali. Só tinha homens. Fui ver mulher jogar na TV com uns 14 anos.”

A ex-atleta diz que seu pai era contra ela jogar futebol e que ficou inúmeras vezes de castigo por conta disso. “E não entendia o porquê. No esconde-esconde, brincavam meninas e meninos juntos. Então por que essa brincadeira tinha que ser só dos meninos? Não via muito sentido nisso. E comecei a burlar as regras desde o começo”, segue.

Ao longo do tempo, criou táticas com os amigos para ser avisada quando seu pai estivesse voltando do trabalho —nessa época, a família morava num condomínio de prédios que tinha uma quadra de areia improvisada. “Ficava todo mundo de olho. Aí, quando alguém via ele de longe, eu saía correndo e ficava num canto. Ele me perguntava o que eu tava fazendo e eu dizia que tava brincando sozinha. Isso eu varada de suor, toda suja”, diz, rindo. 

Seu pai só começou a incentivá-la no esporte quando ela arranjou um time formado somente por meninas, aos 12 anos. No Brasil, jogou em equipes como o São Paulo e o Santos. Em nenhum momento deixou de frequentar a escola e se formou em Educação Física na faculdade.

Foi só às vésperas do Pan no Rio, com quase dez anos de  carreira, que Aline se convenceu de que era uma jogadora de futebol. “Tinha acabado de passar num concurso público pra dar aulas nos CEUs [Centros Educacionais Unificados]. Juntei os papéis e fui na escola. Mas a gente faz na vida tudo ao contrário do que sempre planejou, né?”, diz ela, que, convocada, optou por jogar a competição pela seleção. 

“O futebol sempre foi o lugar em que eu conseguia me desligar de tudo. Apesar do entorno às vezes não ter sido convidativo, dentro das quatro linhas eu me sentia completamente segura e forte.”

Em 2019, a federação organizou a campanha “#PlacarPelaMudança”, que destacava, a partir do placar de um jogo, a desigualdade salarial entre homens e mulheres no Brasil —o letreiro, em vez de mostrar 1 gol, mostrava 0,8, em alusão a dados do IBGE que apontam mulheres recebendo salários 20% menores do que os homens. 

“A minha geração não foi uma que ganhou dinheiro. Longe disso!  Eu saí do Santos para ir para a Rússia [pelo time Rossiyanka, em 2011] ganhando R$ 5 mil [mensais]. Foi meu maior salário no Brasil. Quando voltei, tinha juntado um pouquinho menos de R$ 100 mil, porque ganhava em euro. Isso era tudo o que eu tinha de uma carreira inteira”, segue. 

Ela critica duramente os salários pagos para os homens no futebol. “São valores irreais. Isso destoa completamente da realidade do Brasil e do mundo. E é só 1% dos que praticam que ganham isso. A realidade do salário da maioria dos homens aqui no Brasil é, em média, de R$ 3 mil. Num mundo de desigualdade, não existe um jogador receber R$ 1 milhão por mês.”

“O futebol reflete a sociedade. Tudo o que acontece em campo, acontece lá fora também.  Um caso de racismo no futebol toma proporções muito maiores porque ecoa mais. E é o que está acontecendo todos os dias na nossa sociedade, mas ninguém vê porque acontece na rua. O mesmo vale para o sexismo, o machismo, a homofobia”, diz. “Esporte é política pura, temos essa coisa de separar política de tudo. E não pode. Tudo é política.”

Aline é co-diretora do Guerreiras Project, que usa o futebol como plataforma para discutir desigualdade de gênero. “As pessoas sempre repetiam que mulher pra jogar no Brasil tem que ser guerreira. E, assim, a história não é só nossa, é da mulher. Só que a gente tem voz, porque o futebol tem esse poder de ecoar.”

Os colegas de trabalho apelidaram a ex-atleta de “Aline Pellegrino Fomento”. “O pessoal brinca que a minha história é com o fomento e é verdade. Acho que isso vai muito além da menina ter um espaço para treinar ou um campeonato para jogar. Isso está mais na questão macro cultural, para mudar essa visão sobre o espaço das mulheres na sociedade”. 

“É engraçado quando lembro da primeira vez em que falei que era feminista. Porque já nasci empoderada, cara. Nasci virada, era ninja [ri]. Então falar de bandeira da luta das mulheres, acho que é muito... Não é bandeira. A minha vida toda foi assim, é muito natural.”

Aline diz acreditar que o contexto mundial de crescimento do feminismo contribuiu para a maior visibilidade da modalidade. E avalia que 2019 foi um divisor de águas para o esporte. Pela primeira vez na história, por exemplo, todos os jogos da seleção brasileira na Copa do Mundo foram transmitidos no Brasil em TV aberta. O campeonato Paulista quebrou recordes de público nos estádios —a final reuniu 28 mil torcedores na Arena Corinthians.

E a tendência, segundo ela, é que esse interesse pela modalidade cresça cada vez mais. “Ano passado mostrou para o mundo todo que dá pra fazer. Teve quebra de recordes, audiência, público nos estádios, patrocinadores. O futebol feminino tem muita margem para crescimento.”

“Estamos num momento muito forte enquanto mulheres. E o feminismo é mais forte do que qualquer decreto ou lei que venha [a ser promulgado]. A gente não vai perder o pouco espaço que conseguiu. Vão ter que brigar e lutar muito com a gente, porque não estamos nem um pouquinho dispostas a voltar para trás.”

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