Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Descrição de chapéu Coronavírus

'Foi muito bom ter vivido', diz Raul Cutait depois de vencer a Covid-19

O cirurgião travou uma luta de vida ou morte na UTI do hospital em que trabalha. E diz: 'Senti que tinha que lutar'

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O cirurgião gástrico Raul Cutait, 70, ficou internado quase um mês no hospital Sírio Libanês com Covid-19. Foi para a UTI, saiu e teve que voltar para uma segunda intubação.

Foram momentos dramáticos. Neste depoimento à coluna, ele descreve a sua luta, celebra a vida e diz: “Não tenho uma lembrança ruim incrustada em mim. Nenhuma”.

DE VOLTA

Eu estou muito bem, me recuperando. Porque ficar um certo tempo entubado [na UTI] gera desgaste físico.

Mas a cada dia estou melhor do que no outro, recuperando energias, entusiasmado.

Não tenho do que me queixar. Nada do que tenho é irreparável. Fiquei 20 dias na UTI. Ocorreu uma certa atrofia [muscular], que com exercícios se recupera. Já faço [levantamento de] pesos, caminhadas. Estou me sentindo muito bem, muito bem mesmo.

PEGUEI!

É aquela história: nunca achamos que vai acontecer alguma coisa mais dramática com a gente. Eu não imaginava [que poderia ser infectado]. Mas também nunca fiquei pensando: pô, será que vou pegar? Será que não vou pegar? Eu nunca vivi esse drama.

E um dia eu peguei. Não sei onde, não sei com quem. Há quatro ou cinco hipóteses, mas isso não faz a menor diferença. O fato é: peguei. E uma brava.

Por que [a manifestação] foi tão brava comigo, e não com outros? E por que com alguns é muito mais brava? Eu não tinha nada importante [enfermidades anteriores]. Só um pouco de sobrepeso. Meu coraçãozinho estava em ordem. Apesar da idade [70 anos], corro, ando, me exercito.

Não tem como explicar. É uma doença nova e tem um monte de coisas que ainda não se sabe. É como aprender a andar de bicicleta e tirar a rodinha pedalando. É muita novidade.

Não sou um expert, nem pretendo ser. Muita gente fica falando da doença como se fosse especialista. Eu me recuso. Sou um paciente que tem um certo conhecimento da história e a preocupação do que fazer como sociedade.

EM CASA

Quando recebi a notícia, comecei a me tratar com antibiótico. Quem cuidava de mim era o [infectologista] David Uip. Eu acho que fiz tudo direitinho. Estávamos sempre em contato. Não melhorei. Fui para o hospital, fiz exames. Ele falou: “Você precisa se internar.”

NA UTI

Fiquei uma semana intubado na UTI. Saí. Depois de alguns dias, voltei e fiquei mais uma semana de novo no tubo. Na segunda vez [quando foi avisado de que precisava voltar para a UTI], eu falei: não. Me tratem com antibiótico.

Tive então um diálogo tão engraçado com o David [sorri]. Ele falou: “Não, senhor. A gente passou a vida cuidando junto de doentes graves. Você vai fazer o que tem que fazer”.

Eu falei: “David, eu não aguento mais”. Eu já estava com quadro infeccioso, começando a ficar atrapalhado. Ele e a turma lá [de médicos] não tiveram dúvida: me sedaram e me entubaram [ri]: “Não atrapalha.”

Eu tenho uma relação de dezenas de anos com o David, tratamos de centenas de casos juntos. Não tem “hard feelings” [ressentimentos] entre nós para nada.

E você precisa confiar em quem te trata. Nessa hora, não pode querer sobrepor a sua percepção ao conhecimento dos que mexem com o tema.

Fui um paciente exemplar. Confiei nos meus médicos. Aceitei. Principalmente porque eu estava ali entubado [ri]. Não dava para discutir nada.

E, depois que tudo passou, eu não fiz questão de saber detalhes do que foi feito comigo.

A LUTA

É claro que tive momentos de sofrimento, de chateação na UTI. Principalmente quando você está acordando, com o tubo na boca, quer se comunicar e não consegue.

Mas não tenho qualquer machucadinho por causa disso. Não tenho uma lembrança ruim incrustada em mim. Nenhuma. Acho que é alegria de estar bem. É como se fosse um pedágio, e está pago. Acho até que fiquei mais alegre.

Eu senti em alguns momentos que tinha que lutar. Não era só estar passivamente lá, esperando eles me tratarem.

É uma coisa meio confusa, você está meio sedado, não consegue identificar bem o que é. Mas tenho a lembrança de estar lutando. [Pensava] “Tenho uma família e quero cuidar deles. Tem um monte de coisa gostosa que ainda não fiz. Tem os amigos que te enchem a alma. Não posso ir embora desse jeito. Não tem glamour nenhum [risos].”

E foi muito bom, muito bom, ter vivido.

DONA IVONE

A minha mãe, Ivone, tem 94 anos. A gente escondeu o máximo que pôde dela. Mas aí um dia chegou uma senhora e disse: “Poxa, o teu filho está mal na UTI, né?”. Ela quase caiu. Meu irmão foi lá. Deram uma amenizada na história.

Ela tem três filhos vivos e uma nora, viúva do meu irmão, que é como filha. Tem dez netos e dez bisnetos. Estava acostumada a ser paparicada. Fazia almoços na casa dela. E agora faz um mês que não encosta em ninguém, pelo isolamento.

Descobri uma fórmula. Ela mora aqui perto. Vou até a frente do prédio dela. E conversamos, da rua para a janela.

ELES MERECEM

Eu queria homenagear todos profissionais de saúde, os não médicos, que me deram suporte. Esse pessoal recebe um treinamento enorme. E, no anonimato, acabam segurando ou não os pacientes.

De muitos eu não conheço o rosto. Estavam de máscara sempre. Eu falava “como vou te reconhecer se te cruzar depois no corredor?”. É uma turma de heróis. Tem hora em que você está precisando de um carinho, um deles te segura a mão. Está fazendo exercício, vem o outro e te estimula.

Não adianta [os administradores públicos] falarem “arrumei mais cem leitos de UTI, arrumei respiradores”. E a turma que vai cuidar? Você não tem gente preparada no país para tudo o que está sendo necessário. E olha que, se não fosse o SUS, teríamos uma situação pior do que a dos EUA.

ELES PRECISAM

Por isso o isolamento, por pior que seja do ponto de vista pessoal, econômico, que está sendo catastrófico, é a única maneira de achatar a curva [de casos de Covid] e termos chance de oferecer melhor tratamento para as pessoas.

Podem pensar: no fim das contas, até que o número de mortes não é muito grande. Mas você tem que pensar que está diante de uma pandemia, gravíssima, que pode escapar das mãos.

Mesmo com o isolamento, você vê a toda hora o cara que morreu na fila, que não conseguiu chegar até o hospital

ESCOLHAS

É triste, mas existe uma espécie de seleção em função de o sistema de saúde poder atender ou não.

E você não pode deixar o médico fazer a escolha de Sofia. Eu tenho um respirador, um leito para dois. Quem dos dois eu vou escolher? Não dá.

Eu li em algum lugar: tem um cara mais novo, com chance de viver mais tempo, e uma pessoa mais idosa. Agora, atenção: o mais novo é um delinquente. O mais velho sustenta a família. Quem você vai escolher? Vai ser um juiz de vida ou morte? O médico não pode carregar isso.

Eu já disse: nunca perguntei para os meus pacientes se o tiro que eles receberam era porque mereciam ou não, se estavam assaltando ou sendo assaltados. Não interessa. Tem que resolver o caso.

Os médicos não podem passar por essa situação. E estão passando. Estão passando.

NOVO MUNDO

Tem que haver uma política de divulgação pesada para que a sociedade se sinta motivada Todo mundo tem que ajudar todo mundo. E ninguém pode atrapalhar ninguém.

Não acho que, quando passar, volta tudo ao que era antes. Como também não acho que vai ser tudo diferente. Mas essa percepção de que somos parte de um todo está mais enraizada. O mundo não pode ser muito bonito para uns e absolutamente chuvoso para outros.

FOI

Todo mundo tem a obrigação de se cuidar e de se preocupar com os outros. Uma vez que você pega [Covid-19], é um pouco jogo de sorte. Um amigo da minha idade pegou, em Barcelona. Sentiu calafrios, febrinha —e passou.

Eu fui não tão sortudo. Passei por tudo o que passei. Mas como já falei: isso tudo não me deixou nenhuma marca deletéria. Estou muito bem. Me preparando para em breve estar na vida normal, normal. Com a alegria de constatar que estou vivo.

Não sei por que foi forte. Mas foi. E o bom é que foi.

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