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'Bolsonaro repete a política destrutiva de Collor', diz Amir Labaki sobre cultura

Crítico e diretor do É Tudo Verdade fala sobre adaptações para o festival e lamenta políticas do governo federal

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Retrato do crítico de cinema Amir Labaki, em seu apartamento em Higienópolis, em São Paulo Eduardo Knapp/Folhapress

Bastou uma aula magna para que Amir Labaki percebesse que seu prazer não estava na medicina. Leitor voraz de Freud já na adolescência e cinéfilo declarado desde que assistiu ao desenho animado “Tom e Jerry” pela primeira vez, ele trocou a psiquiatria pela sétima arte no ano de 1982, quando migrou da Faculdade de Medicina da USP para a Escola de Comunicações e Artes, também vinculada à universidade paulista.

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Dali em diante, Labaki trilhou uma carreira que extrapolou projeções de qualquer roteiro dos mais otimistas. Foi crítico de cinema e correspondente de cultura em Nova York nesta Folha, dirigiu o Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo em duas ocasiões, criou o É Tudo Verdade, maior festival de documentários do continente latino-americano, se aventurou como dramaturgo e colecionou histórias ao lado de figuras de maior peso da indústria cinematográfica nacional, como Eduardo Coutinho e Vladimir Carvalho.

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Retrato do crítico de cinema Amir Labaki, em seu apartamento em Higienópolis, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Em 2020, o É Tudo Verdade chega aos seus 25 anos de existência lançando mão do streaming, pela primeira vez em sua história, para exibir a mostra competitiva. “Fizemos a [entrevista] coletiva no dia 10 de março. Dez dias depois, ficou claro que seria inviável manter a ideia original de fazer o festival presencialmente”, conta Labaki.

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As obras começarão a ser disponibilizadas virtualmente a partir da próxima quarta-feira (23). A programação completa será divulgada nesta semana.

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Enquanto os filmes internacionais ficarão no ar por até 24 horas, os nacionais, todos inéditos, terão hora marcada para começar (às 21h) e visionamento limitado a 1.500 pessoas.

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“Em geral, o festival tem sete competidores brasileiros, mas neste ano são dez porque é uma safra muito forte. Num momento de tanta dificuldade, é uma demonstração de vitalidade e de vigor”, afirma o crítico. “Por outro lado, é muito triste e preocupante que a gente tenha dúvidas do que vai acontecer no ano que vem, com a paralisia da produção. Imaginemos as dificuldades ainda maiores que teremos no pós-pandemia.”

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Labaki vê na política do governo Jair Bolsonaro um quê de farsa. “É quase cômico lembrar do outro [Roberto Alvim] parodiando [o nazista Joseph] Goebbels. Assim como também é meio cômico a gente pensar que escalaram a Regina Duarte para esse papel”, diz, aos risos —que cessam logo em seguida, quando recobra um tom sério.

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“Não há motivo para rir porque isso faz parte de uma estratégia deliberada de destruição das instituições culturais brasileiras. Está em marcha uma postura que é abrir mão dos técnicos em toda a máquina federal da cultura, demolir o que existia e empregar apaniguados. É triste constatar, mas na área cultural Bolsonaro repete a política destrutiva do Collor. É muito similar, mas em câmera lenta.”

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No ano de 1990, o ex-presidente Fernando Collor de Mello, ainda no início de seu mandato, extinguiu a Lei Sarney, a primeira de incentivo à cultura no país. O fomento só foi retomado no ano seguinte, sob a alcunha de Lei Rouanet. Collor também determinou o fim do Ministério da Cultura.

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Retrato do crítico de cinema Amir Labaki, em seu apartamento em Higienópolis, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

“Na ditadura do Estado Novo, Getúlio Vargas tinha Gustavo Capanema, que era cercado por intelectuais como Carlos Drummond de Andrade. Na ditadura militar, criaram a Funarte e a Embrafilme. Havia censura, mas havia preocupação com o fomento às artes e com o patrimônio histórico. Já o governo Bolsonaro trata a cultura como inimigo ideológico. É um desmonte lesa-pátria sendo levado a cabo por oportunistas de plantão.”

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“Eu queria que perguntassem ao Paulo Guedes se ele acha razoável que seja sufocada uma parte da economia brasileira que emprega mais de 100 mil pessoas e representa 2,6% do PIB [Produto Interno Bruto]”.

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Labaki chama a atenção para a Cinemateca Brasileira, que enfrenta uma severa crise administrativa. Diz que, se fosse explicado a pessoas que nunca visitaram a instituição que lá estão preservados os primeiros filmes, documentários e cinejornais produzidos no Brasil, não haveria resposta favorável à sua extinção ou à política de Bolsonaro.

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O diretor ainda afirma que falta à imprensa uma postura mais impositiva na cobertura jornalística da crise do setor cultural. “Falta informação e sobram fake news. A gente deveria cobrir a Cinemateca Brasileira da mesma maneira que cobrimos os casos das rachadinhas. As prioridades estão certas, mas a intensidade me parece deixar a desejar.”

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Durante o período de restrições sociais impostas pela Covid-19, Labaki tem voltado suas atenções para processos criativos. Desde o primeiro dia da quarentena, ele se dedica a publicar uma foto por dia em seu perfil no Instagram —que, atualmente, já soma 187 postagens.

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“Em março, ninguém esperava que seis meses depois nós fôssemos estar praticamente na mesma situação, com um agravante que é ter que prantear mais de 133 mil mortos”, diz.

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Neste domingo (20), ele grava uma leitura de sua nova peça de teatro, “Anna & Isaiah”, que conta a história da relação entre a poeta russa Anna Akhmatova e o diplomata russo-britânico Isaiah Berlin. O texto seria apresentado no festival da Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulistana, mas o evento foi adiado.

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“De dia, eu estou trabalhando e produzindo o É Tudo Verdade e, à noite, ensaiando a peça. E é uma delícia”, diz. “Eu sou um homem muito mais feliz desde que comecei a deixar extravasar o meu lado criativo”, afirma, ao revisitar sua produção nos últimos 15 anos.

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“Anna & Isaiah” sucede sua obra teatral de estreia, “Lenya”, apresentada ao público em 2008. Para escrevê-la, Labaki chegou a visitar as cidades russas de Moscou e São Petersburgo em busca de referências para seus cenários.

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Como alguém que já se aventurou em outras ocasiões na história pregressa soviética, o crítico torce o nariz para as discussões em defesa de Josef Stálin que tomaram as redes sociais, e que tiveram como ponto de partida uma entrevista do cantor Caetano Veloso ao apresentador Pedro Bial, transmitida pela TV Globo.

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“É óbvio que não dá pra justificar Stálin, Mao Tse-Tung e Fidel Castro, assim como não dá pra justificar Hitler, Mussolini e Pinochet. Falar que ‘ele foi um tirano, mas…’ dá o direito da direita falar ‘Mussolini foi um tirano, mas…’. A importância do [filme] ‘Narciso em Férias’ é muito maior do que isso. O Caetano é muito maior do que tropeçar numa defesa completamente extemporânea e absurda.”

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Labaki também trabalha numa série documental sobre a crise da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e a luta pela posse do vice-presidente João Goulart. A obra é baseada em seu primeiro livro, “1961 — A Crise da Renúncia e a Solução Parlamentarista”, de 1986.

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Outro braço de sua produção é a série “Cineastas do Real”, que irá para a terceira temporada e traz entrevistas com documentaristas brasileiros. “Isso foi uma das coisas que o luto do [Eduardo] Coutinho me levou a fazer. Eu queria deixar gravadas essas entrevistas históricas”, conta.

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Labaki relembra de uma passagem de 1993, quando dirigiu o MIS pela primeira vez (a segunda vez seria em 2003, no governo Alckmin). “O Coutinho estava muito deprimido. Ele estava com o seu segundo longa feito, mas não conseguia lançar o filme no Brasil.”

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“Num almoço, ele, com todo aquele jeito dele, me falou: ‘Acho que não tem futuro essa coisa de fazer cinema e documentário no Brasil. Eu tenho que achar uma outra coisa para eu fazer’. Aquilo me impactou muito. Se quem fez o ‘Cabra Marcado para Morrer’, que é o maior documentário da história do Brasil, tem essa dificuldade estúpida para lançar o filme seguinte, algo estava muito errado”, diz. Assim nasceu o É Tudo Verdade.

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Labaki diz ter dúvidas sobre uma volta em breve dos equipamentos de cultura. “Infelizmente as salas de cinema e de espetáculos de dança, teatro e música estão entre os menos seguros quando você vê os gráficos de periculosidade feitos por autoridades sanitárias.”

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Ainda assim, ele lamenta as circunstâncias do É Tudo Verdade em 2020. “Por mais que a gente tenha televisões enormes em casa e apague a luz, o cinema é um sonho coletivo. Você sai para sonhar junto com outras pessoas naquele espaço. E festival é ainda mais que isso.”

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