Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Toda música brasileira é preta, diz Sandra de Sá

Aos 65 anos, cantora prepara disco novo, diz que combate ao racismo não pode ser modismo e que cena mainstream tem medo de ousar

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Sandra de Sá vive baseando-se no que chama de “segurador de onda”. “Tem horas em que ele tá on, em outras ele tá off”, diz a cantora sobre as suas tomadas de decisão. “O equilíbrio é saber ligar e desligar. Assino ou não [um contrato]? Respondo ou me calo?”, segue a carioca.

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“Ou eu simplesmente posso falar: ‘Qual é, meu irmão, vou dar um curto-circuito nessa porra! Nem on, nem off!”, afirma ela, que emenda com uma gargalhada. “Sei que a vida depende do meu estado de espírito, então cabe a mim cuidar disso tudo.”

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Nascida em Pilares, na zona norte do Rio de Janeiro, Sandra completou 65 anos de idade em agosto e 40 de carreira em 2020. “E ainda quero viver muito!”, deseja a artista, que conta estar com “a cabeça a mil”, lançou o seu selo musical e prepara um álbum de músicas inéditas.

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“Quando vejo isso tudo, penso: ‘Caraca, eu sou foda, brother!’”, brinca ela. “Fazer 65 anos com a vontade e a paudurescência que estou, tenho que agradecer ao universo e principalmente a mim. E só faz crescer a consciência da responsabilidade que tenho, que mexo com as pessoas. Tenho que ter atenção, não preocupação —é diferente.”

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Sandra falou com a coluna por videoconferência de sua residência em Vargem Pequena, zona oeste da capital fluminense, onde vive com a mulher, Simone Malafaia (compositora com quem se casou há três anos em festa para 300 convidados), o gato Maravilhas e o cachorro Mussum Birits. Elas adotaram o isolamento social como prevenção à Covid-19.

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“Mas se é pra ficar em casa, é pra ficar legal!”, diz a cantora, que transformou a sala de estar em escritório, com paredes repletas de post-its e calendários usados na organização de compromissos.

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“E já que tô aqui, o que fiz? Off no segurador de onda [risos]. Eu e a minha mulher desmontamos uma cama pra fazer um palco”, conta, apontando a câmera do computador para um canto do cômodo cheio de microfones e fundo colorido.

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“Acho que nessa pandemia a gente está percebendo que realmente é tudo muito simples”, reflete ela. “Fizemos uma música inteira com guitarrista, baixista, cada um gravando das suas casas. Quando ouvi, pensei: ‘Bicho, e antes a gente ficava numa loucura de marcar estúdio!’”

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A cantora é criadora da expressão “música preta brasileira”, que faz um trocadilho com a sigla MPB que se refere à Música Popular Brasileira. O termo, conta ela, surgiu em um papo de décadas atrás em sua casa, em que estavam “Ivo Meirelles e mais uma porrada de gente”. Em 2003, a artista lançou um disco ao vivo com esse nome.

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“Toda música brasileira é preta, porque tem o suingue do preto, a esperteza do índio”, diz Sandra. “E quando eu digo isso, não é música de preto brasileiro, não. É música preta bra-si-lei-ra”, afirma, enfatizando cada sílaba da última palavra. “Tanto faz se é Luan Santana ou Lobão, Zezé di Camargo ou Planet Hemp.”

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“Noel [Rosa] é um cara que aparentemente é brancão, mas ouvindo ele de repente não vai dizer que é branco”, segue ela. “Quando faço show, apresento duas músicas para as pessoas identificarem o que eu chamo de música preta. E falo: ‘Uma é composta por um neguinho dos interiores das Alagoas. A outra, por um playboy universitário carioca. Ai canto ‘Flor de Lis’ e ‘Madalena’. Djavan e Ivan Lins! É como Noel Rosa e Monsueto [Menezes].”

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Ela vê com bons olhos a cena musical brasileira atual. “Está linda, surgindo coisa nova como sempre”, avalia. “Mas a balança está muito desigual. Por medo de investir na ousadia”, complementa.

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“Tem que ter de tudo: a bunda, o gogó, a carinha. Mas de tudo mesmo, não só focar no que está dando certo”, afirma a cantora. “Não adianta ter um puta iate, mas o cara que está dirigindo não saber os pontos bacanas daquele litoral pra te levar”, metaforiza. “Não que ele não dirija bem, mas te leva para pontos equivocados. Também é legal de se conhecer, mas o legal mesmo é conhecer tudo. A galera tá muito focada em uma coisa só.”

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“E o artista de repente é o que menos tem parada nisso tudo”, aponta. “Acontece muito de o produtor falar: ‘Adorei esse cara. Agora, se ele cortar o cabelo, botar uma outra roupa, fizer a voz assim, assim e assim, vai ser ótimo’. Mas se só vai dar certo se mudar o cara todo, gostou do que nele? Que porra é essa? [risos]”, diz. “Ousar é ser verdadeiro.”

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Ela se candidatou a vereadora no Rio em 2016. “Mas quase ninguém soube, porque acho que na realidade não interessava [ao partido]. E pior é que outro dia a Jussara, que trabalha comigo, foi ver um lance no TRE [Tribunal Regional Eleitoral] e eu ainda tenho uma dívida de R$ 3.000 da minha campanha”, diz, rindo na sequência.

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Sandra de Sá e Simone Malafaia no Carnaval de 2019
Sandra de Sá e Simone Malafaia no Carnaval de 2019 - Rogerio Fidalgo/AgNews

Sandra é mãe de Jorge de Sá, ator e apresentador nascido do relacionamento com o produtor Tom Saga, quando ela tinha 29 anos. “Até hoje a gente é muito amigo. Mas depois que passou aquela euforia da paixão, continuei a minha vida sem ter que esconder nada.”

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E é do chá de bebê de seu filho, realizado na casa do cantor Cazuza (padrinho de Jorge), que Sandra tem uma das memórias de episódios racistas que já viveu. “Chegamos eu, minha mãe, meu pai e duas primas minhas. O porteiro falou: ‘É pra entrar por aqui’. Era a porta de serviço. Perguntei: ‘Mas esse elevador [social] tá escangalhado?’ Ele: ‘Não, mas é pra passar por aqui’. Pensei: ‘Legal’.”

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“Já fui subindo pensando: ‘Esse cara não sabe o que tá arrumando na vida dele’. Quando cheguei, eles [Cazuza e a mãe, Lucinha Araújo] perguntaram porque eu subi pelo elevador de serviço. Só falei: ‘O porteiro falou que era pra entrar por aqui’”, segue ela, que lembra que os dois então desceram para falar com o funcionário. “O Cazuza ainda falou pro cara: ‘Pô, você, um negão, fazendo isso?”

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“Sofrer atentados [racistas], é lógico que neguinho falou, fala e vai falar. Mas sempre peguei o meu caminho e vim embora, me deu força de pensar: ‘Não me conhece. Me aguarde.’” Ela lembra de uma história com a também cantora Alcione. “Alguém falou: ‘Calma, você está nervosa’. Ela: ‘Nervosa, não. Preto não fica nervoso. Preto fica puto mesmo! [risos].”

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“Tem muito lance de preconceito que extrapola a crueldade: é doença! São pessoas que tem que ser tiradas da sociedade urgentemente. Não é só para ser preso, é pra ter um tratamento. Se não for tratada, vai morrer e não vai conseguir se recuperar.”

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Sandra reforça que a pauta de combate ao preconceito racial não pode ficar só “no modismo”.

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“Quando acontece um negócio desse [a morte do negro americano George Floyd], é comoção, a bancada do jornal [televisivo] tem 10 mil pretos, e todo mundo quer dizer que tem preto trabalhando. ‘Não, veja bem, na minha empresa tem vários!’”

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“A gente tem que refletir e ver que é um sentimento. Neguinho mata preto, sim! Não adianta vir com essa de ‘porque agora tá melhorando’”.

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“Sempre dou exemplo de judeu. Falam: ‘Pô, fulano judeu vem de não sei onde pra ficar rico aqui’. Cara, mas eles estão sempre juntos. Um que tem um negócio pra vender o outro compra pra ajudar, faz sociedade”, diz. “Alô, povo preto, a gente tem que se unir em tudo. Mostrar mais a criouleba”, diz.

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“Temos a Maju [Coutinho, apresentadora], Paula Lima [cantora], Erico Brás [ator].... Tem um bando de preto da melhor qualidade aí. Só falta a gente se juntar de verdade. E acho que a gente está começando a perceber as coisas”, avalia.

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Sandra diz nunca ter se preocupado em dar satisfação aos outros. Cita como exemplo o fato de ser gay. “Não é porque me assumi que tenho que pegar um megafone e sair por aí ‘Alô, gente, ó, eu sou homossexual!’ Agora, me perguntando, eu respondo tranquilamente.”

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“Nunca fiquei com grilo de ser preta, gorda, mulher, sem ser o estereótipo da beleza. Todo o tempo que eu tenho na minha vida eu utilizo para evoluir”, diz.

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“Às vezes me falam: ‘Pô, o fulano de tal fez isso e você ainda trata bem’. Eu digo: ‘Brother, o problema é do fulano com a consciência dele. Não vou perder o meu tempo.”

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“Não sou contra ninguém. Sou a meu favor. Só isso. Sou feliz independente de estar alegre ou triste”, diz a cantora. “Liberdade quem se dá é você. Quer ser livre? Seja livre!”

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