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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'A mídia ainda tem um vício pelo nosso sofrimento', diz Jéssica Ellen

Aos 28 anos, a atriz se prepara para lançar seu segundo disco, fala sobre as gravações de novela em meio à epidemia e reclama da ausência de negras retintas na TV

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Retrato da atriz Jéssica Ellen para divulgação de seu álbum 'Macumbeira' Gabriella Maria/Divulgação

A atriz Jéssica Ellen tem atravessado a crise do novo coronavírus com cada um de seus pés fincados em cenários distintos. De um lado está o Humaitá, bairro de classe média alta da zona sul do Rio de Janeiro em que reside. Do outro, a realidade que se impõe é a da favela da Rocinha, onde mora toda a sua família.

“No elevador do meu prédio tem aviso de entrar uma pessoa por vez, enquanto na Rocinha tem casas que só têm um cômodo. Como é que você vai pedir para a pessoa se isolar?”, questiona.

A dupla realidade vivida pela atriz de 28 anos não é novidade, mas ainda desafia a sua compreensão. “Uma pessoa que ganha um salário mínimo e ainda assim consegue manter uma casa e cuidar de filhos, essa, sim, sabe da economia do país. Ela faz milagre com R$ 1.000, enquanto outras gastam R$ 1.000 num jantar, num vinho. Dá uma agonia saber que a pessoa gastou o que minha mãe ralou o mês inteiro pra ganhar”, segue.

Retrato da atriz Jéssica Ellen para divulgação de seu álbum 'Macumbeira' - Gabriella Maria/Divulgação

Jéssica Ellen conversa com a coluna enquanto tem seus cabelos trançados e se prepara para uma sessão de fotos que realizaria logo em seguida. A ocasião é o lançamento do segundo álbum solo de sua carreira, “Macumbeira”, que chega às plataformas digitais na próxima quarta-feira (20).

A mais nova empreitada da atriz na música terá participações da atriz e cantora Zezé Motta, do cantor Pretinho da Serrinha e de sua irmã, Joyce. As faixas, assim como em seu primeiro disco, “Sankofa”, são permeadas por referências a religiões de matriz africana.

“Tem um monte de gente que fala: ‘Nossa, mas por que você não tá numa gravadora?’. Que gravadora quer contratar uma cantora que fala de macumba, de música para entidade?”, diz sobre a escolha pela produção independente.

Jéssica é adepta do candomblé, mas foi na umbanda que teve seu primeiro contato com a espiritualidade, por meio de seu avô materno. Nos últimos meses, a prática ficou a cargo das ferramentas virtuais.

“Meu pai de santo abria o ‘laptopzinho’ dele, ia lá pra frente da casa do orixá e cada um rezava da sua própria casa. Foi uma das coisas mais importantes da quarentena.”

“Toda vez que vem um pouco mais de ansiedade, de medo, eu me volto para as minhas rezas. A meditação também é uma coisa que faço desde os 13 anos. O teatro ajuda a se expressar, a dança, a entender o seu corpo, e a meditação é essa calmaria da mente. O silêncio também faz parte da saúde.”

Ela conta que costuma ser aconselhada a explorar outros temas em seus trabalhos para atingir novos públicos. “Essa hora ainda vai chegar. Preciso falar para quem gosta dessa sonoridade, que muitas vezes não tem o espaço que deveria ter nas rádios, nas gravadoras. É um sopro de esperança, de amor, de cuidado.”

Retrato da atriz Jéssica Ellen para divulgação de seu álbum 'Macumbeira' - Gabriella Maria/Divulgação

“Macumbeira” foi gravado no mesmo período da volta ao estúdio do elenco de “Amor de Mãe”, novela das nove da TV Globo cuja produção foi interrompida em março passado com a chegada do vírus ao Brasil. A retomada aconteceu na última semana de julho, mas Jéssica só voltou ao folhetim em agosto, depois de se isolar por causa do diagnóstico de Covid-19. “Senti um pouco da falta do paladar e um pouco de tontura quando levantava”, relembra.

“A gente ficou de agosto até o final de novembro gravando. Foi muito esquisito porque somos brasileiros e temos uma maneira de atuar que é quente, é tocando nas pessoas. Você consegue imaginar uma novela sem beijo, sem abraço?”

“Uma cena com a Adriana [Esteves] em que a gente teve uma discussão e tinha que estar perto uma da outra foi feita com um acrílico de quase dois metros entre nós duas, que depois na pós [produção] eles vão apagar”, conta.

Jéssica e o ator Chay Suede, seu par romântico na trama, também tiveram que passar por períodos de isolamento após gravarem cenas com muita proximidade. A novela deve voltar à grade da TV Globo em março deste ano, de acordo com a emissora.

“Acho que depois de Camila [sua personagem em “Amor de Mãe”], em que eu sofri e chorei tanto, tenho muita vontade de fazer uma periguete, um personagem engraçado, pra fazer uma bagunça”, diz, rindo.

Ela faz coro aos artistas descontentes com as políticas do governo Bolsonaro para a cultura. “Esse cara não entende nada de artes, de política. Não consigo entender o que fez o brasileiro votar nele. Ele não teve o meu voto, ninguém da minha família votou nele, isso é uma coisa que tenho muito orgulho. Não gasto minha saliva para falar dele.”

E diz não ter medo de dar opiniões. “Eu tenho uma fama de ser bocuda até demais”, brinca. A atriz celebra o fato de as redes sociais servirem como arena para conteúdos que não estão disponíveis em meios tradicionais. “Tenho primas que sabem o nome de sei lá quantas blogueiras e ativistas negras que estão fazendo conteúdo de forma gratuita.”

“A grande mídia ainda tem um vício pelo nosso sofrimento, por ver o negro naquela labuta ou vivendo um episódio de racismo onde vem uma pessoa branca e tenta mudar a situação. Isso é uma linguagem antiga. Outras plataformas já entenderam e estão produzindo outros conteúdos falando de qualquer coisa que não pelo viés da violência.”

“O racismo deve ser diariamente denunciado, só que existem milhares de maneiras de falar sobre. Trabalhando a autoestima de uma pessoa negra, ela vai saber reagir mil vezes melhor quando viver essa violência. E não só ficar no lugar da dor, que muitas vezes é exposto na televisão.”

Retrato da atriz Jéssica Ellen para divulgação de seu álbum 'Macumbeira' - Gabriella Maria/Divulgação

Jéssica vai além: ela diz que a televisão afirmará uma grande mudança quando atrizes negras de diferentes perfis alçarem grandes papeis. “O meu desejo é que, da mesma maneira que eu e essas outras atrizes de pele um pouco mais clara [ela cita Taís Araujo, Camila Pitanga, Lucy Ramos e Dandara Mariana] tivemos e temos mais oportunidades por conta disso, outras atrizes negras da minha geração que são retintas tenham as mesmas ou mais oportunidades.”

“Dentro de toda a estrutura da pirâmide social, mulheres negras são mais invisibilizadas. Sendo uma mulher negra retinta, isso potencializa muito mais. Quero ver atrizes como Indira Nascimento, Luellem de Castro, Jennifer Dias, Eli Ferreira, Noemia Oliveira, que são excelentes, com as mesmas oportunidades que estou tendo aos 28 anos.”

Questionada sobre as denúncias de assédio contra o ex-diretor de Humor da Globo Marcius Melhem, a atriz não cita o caso, mas diz que não deixa impune iniciativas do gênero.

“Sempre coloquei limites. Lembro de uma vez, fazendo a série ‘Justiça’ [Globo], tava um calor desgraçado. Eu estava com uma roupa fechada e não podia trocar. Eu falei: ‘Jesus, que calor é esse’. Um cara da equipe, que não vi quem era, falou: ‘Tira a roupa’. Eu perguntei quem foi. Silêncio. E falei: ‘Ué, quem mandou eu tirar a roupa foi homem pra falar e agora não é homem pra assumir?’.”

“Claro que já ouvi uma gracinha, mas nada muito incisivo. Desde muito nova, dentro e fora da Globo, sempre tentei colocar limites. Acho que é isso o que tem que acontecer. Os homens têm que começar a ter medo de fazer essas merdas pra parar com essa porra.”

“E que bom que a gente está falando da maneira mais honesta possível porque é daqui [onde estamos] pra frente, não é nem um passo atrás. Não tem mais espaço para isso.”

Retrato da atriz Jéssica Ellen para divulgação de seu álbum 'Macumbeira' - Gabriella Maria/Divulgação

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