Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Para além do vírus, se morre de estresse da situação

'Miopatia de captura' é o nome técnico para estresse da situação, um fenômeno que mata

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"Miopatia de captura" é o nome técnico para estresse da situação, um fenômeno que mata. Ambos constam da notícia sobre a invasão do Parque das Aves, em Foz do Iguaçu, por uma onça-pintada que estava ensinando o filhote de um ano a caçar. De uma colônia de 176 flamingos, apenas quatro sobreviveram. Muitos morreram simplesmente de susto. Tudo natural, na verdade, segundo os responsáveis: "Onças são animais selvagens, carnívoros, exímios predadores. Elas caçam e se alimentam de outros animais. Não são cruéis. São onças".

As aves eram objeto de uma experiência de resgate da espécie, sempre protegidas por cercas. Como foi o primeiro ataque desse tipo em um quarto de século, provavelmente não tinham aguçado o instinto de alerta contra as vizinhas do Projeto Onças do Iguaçu, monitoradas e com nomes próprios: Indira e sua cria Aritana foram as caçadoras.

Há um paralelo instrutivo nesse episódio de floresta, no momento em que a cidade começa a abrir os ouvidos para a sabedoria dos povos originários, este ano reverenciada pela Feira Literária Internacional de Paraty (Flip). É uma percepção que já se impõe a todos. Não é preciso recorrer à Teoria de Gaia, de Jim Lovelock, segundo a qual o planeta inteiro constitui um só organismo. Evidente é o entrelaçamento de homens, animais e vegetais, assim como o imperativo de que as ciências se enlacem às formas de vida.

Onças Indira e Aritana, que atacaram os flamingos no Parque das Aves, em Foz do Iguaçu
Onças Indira e Aritana, que atacaram os flamingos no Parque das Aves, em Foz do Iguaçu - @oncasdoiguacu no Facebook

Os saberes emergentes trazem à luz o que não consta dos protocolos oficiais de linguagem e pensamento. Antes de tudo, a premissa de que floresta não significa pobreza, e sim uma inteligência que contempla a conexão de todos os seres vivos: se alguém corre risco, como no caso da pandemia, ninguém está realmente a salvo. Urge educar-se pelo livro da natureza, onde aquilo que se cala é tão importante quanto o que se diz.

Sobre as invasões: não são todas naturais como a dos bichos ou das plantas exóticas que, às vezes, competem com espécies originárias. Danosa mesmo, com consequências planetariamente irreversíveis, é a infestação predatória dos homens, um efeito dos sistemas de destruição das formas de vida incompatíveis com o capital extrativista.

Morrer de choque, porém, como as aves diante do imprevisto das onças, é um ponto fora da curva. Os flamingos como que "esqueceram" o risco natural. Daí a possibilidade de se avaliar por comparação os efeitos de outros tipos de miopatia junto a nós mesmos, o povo urbano. Do estado geral de caos e cansaço, fruto provável da captura de civilidade por aliens da democracia, infere-se que a angústia coletiva é real. Para além do vírus e da fome, tem gente, jovens e velhos, morrendo de estresse da situação.

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