Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Na porta de casa

Ante o perverso espelhamento de resíduos do poder colonial, o jornalismo corre o risco de colocar no mesmo plano os discursos do opressor e do oprimido

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Sumiu do noticiário, mas permanece na memória de alguns, a cena abominável em que um casal maranhense agride fisicamente um rapaz de tez escura quando abria a porta do seu carro na frente do edifício onde reside. O cotidiano é naturalmente mais largo do que o espaço na imprensa.

Repetir notícia esbarra no limite de uma das regras básicas do ofício, que é não cansar o leitor. Mas a velocidade noticiosa por vezes tapa a visão de fatos essenciais na cobertura do racismo no país.

É que as formulações violentas de senhorialidade racial são expostas como se fossem casos ou "desvios" individuais. Aqui, o episódio do magistrado que intimida o guarda com a fórmula do "você sabe com quem está falando?". Acolá, a altíssima autoridade garante que nenhum de seus filhos se casaria com uma mulher negra, pois teriam sido "muito bem criados". Nada disso subjetiviza o ato racista. Isso quer dizer que não é mera questão de foro íntimo, mas de representações externas, construídas ao longo da história escravista e geradoras de uma "forma" dinâmica de hierarquização racial.

Charge publicada na Folha no dia 18 de janeiro de 2022. A charge é dividida em dois quadros. Título do primeiro quadro: Racismo. Na imagem, um homem branco está com um braço levantado balançando um chicote e um homem negro com as costas sangrando está preso por correntes em um tronco. Título do segundo quadro: Racismo reverso. Na imagem, a cena se repete, um homem branco está com um braço levantado balançando um chicote e um homem negro com as costas sangrando está preso por correntes em um tronco.
Charge publicada na página Opinião de 18.jan.2022 - Benett

Existe, sim, uma "forma social escravista", que não é singularidade psicológica, mas fenômeno objetivo, como uma continuidade (despercebida) do arcabouço colonial. O que pareceria tão só convicção pessoal é mesmo a representação coletiva do país como latifúndio escravista. Sensações e opiniões podem ser privadas, mas a sua regra constitutiva provém de uma consciência senhorial comum, associada à brancura, que espelha o passado.

O reflexo se estende às camadas populares, que "transcrevem" por palavras e atos as prescrições raciais do Andar de Cima, não raro com uma cumplicidade análoga à registrada entre torturado e torturador. Nada aí é "reverso". Se fosse, o racismo seria apenas um fenômeno psicológico passível de inversão, quando é de fato o perverso espelhamento de resíduos do poder colonial.

Mas uma passagem imotivada ao ato físico, como a do casal maranhense, é anômala. Num lampejo, emergiu a forma escravista, alucinada por fúria narcísica: de graça, a dupla procurou emular, por palavras e atos ("pisa no pescoço dele!"), a representação midiática do assassinato de George Floyd nos EUA. Essa forma tem se escondido. Sem dela saber, o jornalismo corre o risco de colocar no mesmo plano os discursos do opressor e do oprimido.

Isso talvez sugira uma postura editorial em que o marketing polemista e a regra do ineditismo deem lugar a uma perspectiva construtiva, capaz de pôr em pauta permanente o inquietante prognóstico do abolicionista Joaquim Nabuco: "A escravidão permanecerá por muito tempo a característica nacional do Brasil".

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