Diretamente, o filme "A Grande Mentira" (2019), de Bill Condon, não tem nada a ver com o que se passa na vida pública brasileira, avassalada ao longo de três anos pelo fake das redes e pela corrupção do discurso social. Na tela, um vigarista aproxima-se de velha dama milionária para roubá-la. Só que as coisas não se passam exatamente assim, pois o roteiro desmantela aos poucos a farsa inicial e torna incerto o verdadeiro sujeito da fraude.
O interesse de agora é que a expressão "grande mentira" começa a entrar no vocabulário das análises como chave explicativa mais ampla. Basta pensar que a atual ocupação democrática do poder deveu-se a falseamentos que impactaram eleitores convenientes numa conjuntura crítica. Abriu-se uma brecha no arrazoado liberal, campo livre para um ataque.
Sobre esse tipo de lance, mas noutro contexto, individual, os mestres de artes marciais falam de um átimo de tempo em que o corpo perde a unidade e se torna vulnerável. A forma estável, de repente inadequada, abre-se ao golpe inesperado. Tudo depende da ocasião certa.
No corpo coletivo, o ataque lesivo também prospera na oportunidade. Um exemplo histórico entre nós é o Plano Cohen, a falsa conspiração usada por Vargas como pretexto para a ditadura do Estado Novo (1937-45). Quatro anos antes, o incêndio do Reichstag (1933) tinha servido a Hitler como acontecimento crucial para instaurar a Alemanha nazista.
Apesar das diferenças, há uma convergência na crise das mediações entre o poder e as massas, brecha propícia à fabricação de um bode expiatório comum: a suposta ameaça comunista. Nenhuma explicação melhor para a universalidade desse bode do que o Levítico, no Antigo Testamento. O imaginário é sem fronteiras.
Hoje fica cada vez mais nítida a inadequação entre o corpo coletivo oficial e o estado latente da nação. Em sua aversão ao território popular, as elites perderam o pudor. A violência urbana desfez a ideologia da brasilidade cordial. O vácuo da política deu lugar a uma comunicação cega do sistema de poder com o país. Emergiram as minorias, mas se dispersaram rápido demais as mediações tradicionais (partidos, sindicatos etc.). E a internet, com todas as suas redes e aplicativos, não cria espaços reais de representação coletiva.
Fez-se assim oportuna a Grande Mentira do populismo autoritário: uma brecha na imunidade democrática. Deu no que está dando. Mas, como no filme, é viável a desmontagem da farsa. O corpo nacional foi atingido, porém instituições estáveis e independentes despontam como vacina. A reabilitação não pode ser apenas eleitoral e midiática: o grande desafio é a recuperação da civilidade.
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