Um paradoxo sombrio vem sendo soprado pelos ventos do iliberalismo: quanto mais se fala em liberdade de expressão, mais se voltam as costas à liberdade de imprensa. É mundial o cômputo de prisões, mordaças e assassinatos de jornalistas.
Vale partir de pequenos exemplos nos EUA, cuja Primeira Emenda é suporte clássico para a imprensa liberal. Dados oficiais mostram que mais de cem repórteres foram presos e processados em 2020 simplesmente porque cobriam protestos pelo assassinato de George Floyd. As ações terminam derrubadas por tribunais, mas sua multiplicação é sintoma da tendência de criminalizar a mera rotina jornalística por parte de autoridades.
Um caso modelar: durante semanas, sem qualquer explicação, um juiz da Carolina do Norte proibiu o acesso de jornalistas ao tribunal. Ante o protesto de um editor local, o juiz mandou expulsá-lo algemado do prédio, ameaçando-o de desacato. Os incidentes se acumulam, junto com as preocupações de analistas e advogados da liberdade de imprensa, que veem em tudo isso "passos para a autocracia". Há também quem considere que a recorrente demonização de jornalistas como "inimigos do povo" por parte de Trump tenha contribuído largamente para esse estado de coisas.
Entretanto, o fenômeno é bem mais complexo que isso.
Primeiro, a informação pública, apesar de todos os avanços técnicos, permanece aquém do fulgor obtido no passado do liberalismo pela imprensa afinada com a cidadania. A relevância de uma notícia não se deve apenas à sua lógica interna, mas basicamente às referências sociopolíticas que permitem validá-la por meio de um pacto de credibilidade entre a imprensa e seu público. Cabe naturalmente à política gerar as condições democráticas para a formação de pactos confiáveis.
Segundo, a diversidade das movimentações de massa em diferentes regiões do mundo evidencia o esgotamento dos processos clássicos de integração da cidadania no todo social. Esvai-se o "pacto fiduciário" de sustentação da sociedade, abrindo-se portas às autocracias e ao potencial conectivo das redes eletrônicas. Nelas, o que importa é o alcance do poder de mobilização.
Liberdade de expressão, conceito chave da Declaração dos Direitos do Homem, converteu-se, assim, em álibi individual para publicizar a esfera incivil da vida privada. Não é jornalismo, pois não requer, como no caso da liberdade de imprensa, conteúdos racionais ou institucionalmente coerentes. Conta certamente com o fervor delirante de usuários da rede, que não são cidadãos pautados por responsabilidade social, e sim pelas perversões narcísicas da fala. Apenas como a outra face do valor democrático a expressão é realmente livre.
Muniz Sodré
Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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As duas faces da liberdade
É mundial o cômputo de prisões, mordaças e assassinatos de jornalistas
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