Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré
Descrição de chapéu

Uma douta podridão

Ao reproduzir o gesto da votação, a imagem traduz o momento da forma política atual

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O dedo que aperta a tecla da urna na Bienal de Arte em Veneza representa para o artista brasileiro da instalação "Com o Coração Saindo pela Boca" apenas um dos inquietantes desarranjos no presente corpo coletivo do Brasil.

escultura de dedo podre apertando tecla verde de urna eletrônica
Dedo podre aperta tecla verde de urna eletrônica em parte da instalação 'Com o Coração Saindo pela Boca', de Jonathas de Andrade, no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza 2022 - Ding Musa/Fundação Bienal de São Paulo


Há outras partes corporais, mas a escultura chama a atenção no país onde Michelangelo, pintando a "Criação de Adão" no teto da Capela Sistina, mostra o quase toque do firme dedo de Deus no hesitante dedo do homem em vias de ser criado. Já o indicador humano concebido pelo brasileiro está podre.


Quaisquer que sejam as motivações pessoais, o artista dispõe objetivamente o corpo como algo capaz de refletir e pensar o meio ambiente atual em pontos problemáticos. Em maior ou menor escala, as diversas peças da instalação ajustam-se a uma culta tradição de pensamento, para a qual tudo o que existe é corpo, e este é tudo aquilo que age ou atua.


Imaginar o país como um corpo coletivo é supor que ele assimila, de modo análogo a um dispositivo sensível, os estímulos sociais, culturais e políticos ativos num momento preciso da história. O que aí se figura como um centro de interpretação pode ser o próprio instinto popular, absorvido e materializado pelo artista.


Ao reproduzir o gesto da votação, a escultura põe em cena o momento crucial da forma política parlamentar. Não é necessariamente um ato de transformação, mas algo que sinaliza a manutenção do formalismo democrático compatível com o parlamentarismo, ainda que os resultados possam não se traduzir em avanço civil.

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Charge alude ao voto contra si mesmo - Laerte - 8.out.18/Folhapress


É possível votar no pior, como atestam as eleições de autocratas, empenhados no retrocesso da história. Por outro lado, até na opção progressista o voto é o mecanismo a partir do qual um partido vitorioso é obrigado a abandonar quaisquer projetos de mudança profunda para integrar-se ao ordenamento conservador do Estado.


Indiretamente, o trabalho do artista sugere a formulação de outro quadro de pensamento para a política. Há um bom tempo atrás, o filósofo e ativista francês Alain Badiou observou que determinados acontecimentos reais tornam-se obscuros quando se tenta compreendê-los a partir de referenciais antigos como o Estado, o partido, a história e as classes. Acontecimentos pouco claros, porque se passam fora dos quadros da representação clássica, exigem uma atenção ainda estranha à prática política.


Embora democraticamente imprescindível, o voto não mostra tudo, isto é, não faz entender o que realmente pensam e querem as pessoas. Esse, porém, seria um caminho inovador: auscultar e sintonizar-se com o melhor das massas para instituí-las como povo. Sem isso, o dedo cumpre o rito eleitoral, porém, cedo ou tarde, revela-se podre no gesto.

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