O dedo que aperta a tecla da urna na Bienal de Arte em Veneza representa para o artista brasileiro da instalação "Com o Coração Saindo pela Boca" apenas um dos inquietantes desarranjos no presente corpo coletivo do Brasil.
Há outras partes corporais, mas a escultura chama a atenção no país onde Michelangelo, pintando a "Criação de Adão" no teto da Capela Sistina, mostra o quase toque do firme dedo de Deus no hesitante dedo do homem em vias de ser criado. Já o indicador humano concebido pelo brasileiro está podre.
Quaisquer que sejam as motivações pessoais, o artista dispõe objetivamente o corpo como algo capaz de refletir e pensar o meio ambiente atual em pontos problemáticos. Em maior ou menor escala, as diversas peças da instalação ajustam-se a uma culta tradição de pensamento, para a qual tudo o que existe é corpo, e este é tudo aquilo que age ou atua.
Imaginar o país como um corpo coletivo é supor que ele assimila, de modo análogo a um dispositivo sensível, os estímulos sociais, culturais e políticos ativos num momento preciso da história. O que aí se figura como um centro de interpretação pode ser o próprio instinto popular, absorvido e materializado pelo artista.
Ao reproduzir o gesto da votação, a escultura põe em cena o momento crucial da forma política parlamentar. Não é necessariamente um ato de transformação, mas algo que sinaliza a manutenção do formalismo democrático compatível com o parlamentarismo, ainda que os resultados possam não se traduzir em avanço civil.
É possível votar no pior, como atestam as eleições de autocratas, empenhados no retrocesso da história. Por outro lado, até na opção progressista o voto é o mecanismo a partir do qual um partido vitorioso é obrigado a abandonar quaisquer projetos de mudança profunda para integrar-se ao ordenamento conservador do Estado.
Indiretamente, o trabalho do artista sugere a formulação de outro quadro de pensamento para a política. Há um bom tempo atrás, o filósofo e ativista francês Alain Badiou observou que determinados acontecimentos reais tornam-se obscuros quando se tenta compreendê-los a partir de referenciais antigos como o Estado, o partido, a história e as classes. Acontecimentos pouco claros, porque se passam fora dos quadros da representação clássica, exigem uma atenção ainda estranha à prática política.
Embora democraticamente imprescindível, o voto não mostra tudo, isto é, não faz entender o que realmente pensam e querem as pessoas. Esse, porém, seria um caminho inovador: auscultar e sintonizar-se com o melhor das massas para instituí-las como povo. Sem isso, o dedo cumpre o rito eleitoral, porém, cedo ou tarde, revela-se podre no gesto.
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