Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Descrição de chapéu CPI da Covid

Comportamentos públicos estão entre a alucinação e o fato

Na conjuntura atual, alucinação equivale à percepção a-histórica dos acontecimentos

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Uma hipótese considerável é a de que uma parcela cada vez maior de comportamentos públicos seja guiada por orientações situadas entre a alucinação e o fato.

Isso tem sido recorrente sob o atual estado de coisas. Mas uma demonstração analiticamente exemplar foi dada no ato de pré-campanha do ex-ministro da Saúde e general da reserva Eduardo Pazuello, num restaurante da Zona Oeste do Rio.

Ali se registrou aquilo que o olhar da semiologia poderia caracterizar como uma semiose "fuzzy": um entrecruzamento de sinais trocados, mas aceitos como discurso coerente sobre a factualidade.

O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello - Antonio Molina/otoarena/Folhapress

Primeiro, uma seriação musical constante de hino nacional, Pai-Nosso religioso e trilha de "Tropa de Elite". Até aí, um laivo de coerência, uma vez que o candidato a deputado federal, empenhado num projeto de "formação da base política da direita conservadora contra o ativismo político e judicial", define o seu verdadeiro status: "Eu sou da tropa que o presidente vai ter para 2022".

Nas paredes, ao lado de quadros de motocicletas possantes, estavam coladas bandeiras do Brasil. Em seguida, uma sessão de completo desvario. Denunciou-se um plano imaginário, supostamente gestado no município fluminense de Maricá, de transformar todo o estado num polo socialista, com "provas" evidentes: "Até ônibus de graça tem lá". E o Foro de São Paulo estaria trabalhando há mais de 20 anos para implantar na América do Sul o bolivarianismo.

Esse tipo de discurso, em que um fato é sinalizado e depois se esconde, abre caminho ao delírio ou à alucinação. Tem-se falado sobre a penetração de aportes insanos na normalidade institucional (sob Trump havia a "equipe normal" e a "equipe louca"), mas não se trata de nada que se possa chamar clinicamente de "loucura". Está em causa a evidência de que a posição perceptiva de determinadas bolhas grupais em relação aos objetos reais de experiência é alucinatória.

Assim, o ônibus para os carentes em Maricá é real, mas a inferência socialista é um delírio. Ou então, governo e militares proclamam a defesa da Amazônia frente a uma ameaça imaginária, enquanto na realidade a invasão já se deu por criminosos de vários quilates, sob os olhares nublados dos delirantes. Sem falar no enredo das urnas eleitorais.

Nessa conjuntura, alucinação equivale à percepção a-histórica dos acontecimentos. Diz-se que todo paranoico estaria cinquenta por cento certo.

Em sua organização primitiva da experiência, a bolha está sempre paranoicamente aquém do fato, oscilando entre a queixa e a onipotência. A base sensorial é a defesa contra uma falsa conspiração: socialismo, bolivarianismo, o que se invente. Socialmente, é a legitimação da boçalidade.

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