Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

O saturado e o podre

Tudo é efeito da exaustão de instituições democráticas, em meio ao turbilhão mundial de mudanças

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Em entrevista bem ponderada, um pastor evangélico fez raro diagnóstico de "apodrecimento da política e da religião". Há, de fato, um momento em que toda forma de poder, benigna ou maligna, começa a definhar. Para o primeiro tipo, o sociólogo russo Pitirim Sorokin, fundador do departamento de sociologia de Harvard, concebeu a hipótese da "saturação", ou seja, de esgotamento das possibilidades históricas de uma forma social. O segundo diz respeito às formas autocráticas, que atropelam a normalidade das instituições sociais.

O Congresso Nacional, modelo de saturação das formas da democracia representativa - Antonio Molina - 1.jul.22/Folhapress


É possível, assim, falar de saturação das formas canônicas da democracia representativa ou, noutro plano, de uma fórmula anteriormente consagrada da indústria cultural. A televisão e as revistas semanais coloridas fornecem um bom exemplo. Nas décadas de 1960 e 1970, as revistas prosperaram em termos de audiência e publicidade até a inevitável saturação frente aos atrativos da televisão que, por sua vez, também tenta hoje contornar com "remakes" de sucesso o enfartamento das telenovelas. Esse é um fenômeno razoavelmente normal, dentro do escopo teórico de Sorokin.


Agora, fala-se publicamente de algo além do mero saturado, que é o podre. A fala do pastor foi explícita, mas referências e adjetivos de formadores de opinião revelam ampla percepção do apodrecimento cognitivo nos comportamentos públicos, de que acaba de dar mostra à diplomacia estrangeira o presidente da República. Além disso, porém, é o próprio tecido coesivo de instituições, no âmbito da religião e da política. Basta ver a sanha autodestrutiva da elite política, que oscila entre o espúrio e o escatológico. Ou então, as "igrejas" que se multiplicam como vírus ou filiais de comércio umas das outras, amealhando o máximo da renda mínima de legiões de incautos. É como se houvesse septicemia da dignidade pessoal e coletiva.


Numa perspectiva global, isso tudo é efeito da exaustão de instituições democráticas, em meio ao turbilhão mundial de mudanças. São diversos, porém, os níveis regionais do fenômeno. O que dá margem à "teoria da flor frágil", a ideia do sociólogo Anthony Giddens de que a democracia não pode crescer em terreno superficial, pois suas raízes dependem de solo profundo e de acumulação de cultura cívica. Seria o tipo de crescimento que Gramsci identificou como "ocidentalização" da sociedade civil, do qual se viram entre nós alguns sinais com o fim da ditadura militar.


Só que a política já saturada foi incapaz de perceber outro tipo de sedimentação, a do Mal, solo da atual variante "transgênica" entre o perverso e o asqueroso. Assim chegamos ao auge: não só as coisas, mas também um certo substrato humano está indo pelo ralo, além da saturação e apodrecendo a inferno aberto, como esgoto não tratado.

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