Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

São Paulo, a cidade onde a população em situação de rua mais cresce no mundo

Uma cidade formada só por moradores das ruas de São Paulo seria mais populosa do que 4.000 dos 5.568 municípios do país

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No século passado, São Paulo se vangloriava por sua pujança. Nos anos 1940, se orgulhava de ser o “maior centro industrial da América Latina”, frase inscrita nos bondes. Nos anos 1960, o lema era “a cidade que mais cresce no mundo”. Nos anos 1970, o rádio cantava toda manhã que era “a cidade que amanhece trabalhando”. Nos anos 1990, era “a maior cidade global do hemisfério sul”.  

O ufanismo paulistano, no entanto, é coisa do passado, embora ainda se tente repetir esses ímpetos de grandeza ao se difundir slogans como “São Paulo, a Capital da Cultura” ou de se anunciar que a cidade terá o maior carnaval do país.

Infelizmente, esses rompantes não geram mais autoestima nos paulistanos. Basta andar nas ruas do centro para constatar, a olho nu, que talvez a melhor definição a São Paulo do século 21 seja “cidade onde a população em situação de rua mais cresce no mundo”. Envergonhados e constrangidos, nos deparamos, cotidianamente, com o triste “espetáculo” da miséria tomando conta do espaço público.

O censo realizado pela prefeitura em 2019, anunciado nessa semana, apenas confirmou e quantificou o que já se sabia: nos últimos quatro anos essa população cresceu a uma extraordinária taxa média anual de 11,5%, pulando de 15,9 mil para 24,4 mil pessoas. A maioria são homens (85%), em idade de trabalho, de 18 a 60 anos (83%) e pardos, negros e indígenas (71%).

Se os moradores que vivem nas ruas de São Paulo formassem um município, ele seria o de maior crescimento em todo o país, além de ser mais populoso do que cerca de quatro mil dos 5.568 municípios brasileiros.

Os números são chocantes e, ainda assim, podem estar subestimados. O Movimento da Pop Rua esperava um crescimento ainda maior. A organização alega que uma operação policial esvaziou a cracolândia três horas antes da contagem e que muitas ruas da cidade ficaram de fora do censo. Argumentou, ainda, que 33.292 famílias classificadas como “em situação de rua” estão inscritas no Cadastro Único para Programa Sociais (Cad único), que é atualizado a cada dois anos, revelando um número acima do divulgado.

Além disso, segundo a empresa que executou a pesquisa, a Qualitest, a metodologia adotada não considerou pessoas que dormiam em barracos de madeirit, mesmo se construídos de forma improvisada na rua. Foram apenas contados os que dormiam nas ruas entre as 22 horas e as 6 horas da manhã seguinte e os que estavam acolhidos em abrigos.

De fato, contar a população em situação de rua não é tarefa fácil. Exige experiência e conhecimento do tema, permanente atualização da metodologia e uma capacidade de produzir dados comparáveis, em uma série histórica.

Como o IBGE não inclui a população em situação de rua no Censo Demográfico (como se ela não existisse), em São Paulo, a Fundação do Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), em parceria com a prefeitura, desenvolveu desde 2000 uma metodologia pioneira para realizar essa contagem, tendo executado todos os seis censos anteriores.

É lamentável que a prefeitura tenha desconsiderado a expertice da Fipe, o que justificaria uma contratação por dispensa de licitação, e optado por realizar um pregão eletrônico por menor preço, o que levou a contratação da Qualitest, uma empresa do Espirito Santo, praticamente sem experiência anterior nesse tipo de levantamento.

Apesar dos questionamentos, a realização do censo, previsto em lei, foi um grande avanço. Conhecer uma questão tão complexa é indispensável para seu adequado enfrentamento. Mas as ações anunciadas pela prefeitura, embora demonstrem alguma iniciativa, são tímidas.

O projeto piloto de atendimento integral, cujo resultado seria “o retorno ao convívio familiar ou moradia autônoma”, garantindo uma resolução definitiva do problema, está limitado a cem pessoas, um número irrisório. Ademais, o valor total previsto para cada atendimento (R$ 14,2 mil) é insuficiente para gerar o resultado esperado.

No âmbito na moradia, estão previstas apenas duas mil vagas em “repúblicas”, solução proposta por entidades ligadas a Igreja Católica por garantir mais autonomia aos moradores como alternativa ao rejeitado acolhimento em albergue. A proposta atende a menos de 10% da população contada no censo. Já o valor previsto para locação social (60 milhões) é suficiente para construir cerca de 400 unidades. Nesse ritmo, o problema continuará crescendo.

Implementar políticas públicas, com prioridade, para enfrentar esse problema é essencial em qualquer projeto de cidade digna e exige mais ousadia e espírito de urgência.

É indispensável a realização de ações preventivas para estancar o crescimento da população em situação de rua. A crise econômica e o desemprego agravam o problema, mas não é sua causa principal, atingindo apenas 23% pesquisados, enquanto 50% declaram problemas de desestruturação familiar.

Sem um conhecimento mais consistente e uma maior aproximação dos fatores estruturais que geram o aumento da população de rua, dificilmente irá se formular uma estratégia e políticas públicas adequadas para um enfrentamento do problema.

Para tanto, além realizar periodicamente um censo, a prefeitura deveria criar, em parceria com uma rede de pesquisadores e de organizações que atuam no enfrentamento da questão, um Observatório que estude a questão e alternativas para enfrentá-la.

População em situação de rua existe em todas as grandes cidades do mundo. Isso, porém, não pode servir de desculpa para naturalizar uma situação degradante que envergonha a cidade e que cresce em ritmo exponencial.  

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