Acabo de chegar dos Estados Unidos. Iria participar de seminários universitários em New York e Berkeley, que foram suspensos em decorrência do coronavirus. Em NY, na semana passada, todos os eventos públicos foram cancelados; as aulas suspensas em todas as universidades; os museus fecharam a partir de 4ª feira e os restaurantes estão funcionando de janelas abertas, com redução de 30% no número de mesas, para distanciar os clientes.
Viajei de máscara, seguindo a orientação das autoridades de saúde pública, que recomendam também isolamento de, no mínimo, sete dias após voltar do exterior. Chegando, sentei para escrever essa coluna, que seria sobre o equivocado veto da gestão Bruno Covas ao Parque do Bixiga, mas não me contive ao receber a notícia de que Bolsonaro, que também voltou dos EUA, com uma comitiva que já tem doze pessoas contaminadas pelo coronavirus, saiu do isolamento e se misturou durante mais de uma hora com os participantes do ato desse domingo em Brasília.
O presidente cometeu, simultaneamente, um duplo crime de responsabilidade.
Por um lado, contrariando as recomendações do próprio Ministério da Saúde (um dos poucos setores do governo que, afortunadamente, ainda não foi destroçado), correu o risco de contaminar algumas das centenas de pessoas com quem teve contato direto na manifestação de Brasília, onde apertou mãos, abraçou e tirou selfies com apoiadores. A atitude combina bem com um presidente que não acredita na ciência e que classificou o coronavirus de “fantasia”, assim como com as declarações dos líderes do movimento que, na Avenida Paulista, chamaram o coronavirus de “mentira”.
Por outro lado, o presidente convocou e participou de atos que atacaram a Constituição. Os manifestantes pediram intervenção militar, defenderam o AI-5, atacaram o Congresso e o Supremo e, em última instancia, sob o argumento de “defender o Brasil”, exigiram um regime forte, centralizado na presidência.
Isso é inadmissível. Chega de passar a mão na cabeça de um governante irresponsável, que expõe a vida das pessoas ao risco da contaminação de um vírus e que, abertamente, apoia grupos e movimentos que estão atacando a Constituição. O Congresso não pode mais ficar imobilizado, com o país caminhando para uma crise econômica, social e de gestão sem precedentes.
A história está repleta de exemplos de presidentes que, após serem eleitos democraticamente, utilizam-se de massas fanatizadas, associadas a forças militares e/ou policiais (como os do motim do Ceará) para extravasar seu poder constitucional, esvaziar ou controlar os demais poderes e governar sem o sistema de freios e contrafreios que caracteriza a democracia.
Há dois anos, logo após a prisão de Lula, escrevi uma coluna que continua atual. “A frustração com a política, a polarização extremada e a intolerância são ingredientes para a emergência de regimes autoritários. Ainda mais se alimentados por uma crise econômica prolongada, pelo desemprego e pelo medo. É o Brasil nos últimos anos. A cada novo acontecimento, fica mais claro o risco de um retrocesso. (...) Nesse contexto, Bolsonaro, com um forte viés autoritário, lidera quando Lula é excluído. Ele vocaliza o descrédito no sistema democrático e a ideologia da segurança, de apelo popular. É fundamental a formação de uma ampla frente democrática, antifascista. O país precisa debater e pactuar, em um ambiente democrático, saídas para a crise. O golpe contra Dilma e o impeachment preventivo de Lula foram planejados para viabilizar um programa neoliberal. Mas, de fato, vem abrindo o espaço para uma alternativa autoritária e populista, que custará caríssimo para o país.” (Folha, 10/4/2018).
Uma frente democrática não é, necessariamente, uma política de conciliação. É recriação de um ambiente democrático e minimamente racional, onde possa se debater, com divergências, novas políticas públicas e o papel do Estado para tirar o país da depressão econômica, social e política que se aprofunda.
O desmonte do Estado provocado pelo Bolsonarismo, a frustração com a inoperância das reformas e política econômica comandada por Guedes, que não gera resultados efetivos, e a inevitável crise econômica mundial provocada pelo coronavirus, tem levado muitos dos defensores das reformas neoliberais a rever posições ortodoxas.
Em entrevista à Ilustríssima (Folha, 15/3), André Lara Resende afirma que “a tentativa de equilibrar as contas públicas, a curto prazo e a qualquer custo, inviabiliza os investimentos públicos e paralisa serviços básicos. Não há recuperação possível nessas condições”. Rodrigo Maia tem feito afirmações semelhantes, o que mostra que algo se move e que o “liberalismo primitivo” já não é mais um consenso nas elites.
Na mesma entrevista, Resende afirma que “um Estado competente é condição para garantir serviços públicos de qualidade e o bom funcionamento da economia competitiva”. A frase, assim como a anterior, poderia ter vindo de um político da esquerda moderada, contrário à concepção de Estado mínimo mas que admite uma economia competitiva.
Isso mostra a necessidade de criação de espaços de diálogo e de convergências mínimas para romper a estagnação do país. Mas nada indica que isso seja possível em um ambiente tóxico e antidemocrático como o proporcionado pelo atual governo. Antes que seja tarde, é necessário criar as condições políticas para dar um novo rumo ao país.
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