O planejamento funcionalista do século XX, que organizou as cidades sob um suposto “interesse geral", desconsiderou outras formas de desigualdade além da sócio-econômica, como o gênero, etnia, cor, origem e orientação sexual.
Uma nova agenda de desenvolvimento urbano, que objetive amenizar as desigualdades e garantir o direito à cidade para todxs, precisa dar centralidade para essas dimensões. Em especial, nesse 8 de março, é necessário propor políticas urbanas do ponto de vista da mulher.
A busca por um urbanismo que privilegie esse olhar remonta à primeira onda feminista, nos anos 1920. Algumas profissionais vinculadas à arquitetura moderna, como a arquiteta austriaca Margarete Schutte-Lihotzky e a engenheira brasileira Carmen Portinho propuseram inovações para facilitar o trabalho doméstico, dar mais independencia às mulheres e,assim, permitir sua inserção no mercado de trabalho.
Schutte elaborou, em 1926, na importante produção alemã de habitação do entre guerras, o conceito da “cozinha de Frankfurt”, que ela chamou de "laboratório da dona de casa". A proposta, que gerou as atuais cozinhas planejadas, oferecia conforto e equipamentos para atenuar um trabalho que, na época, era exclusivamente feminino.
A engenheira Carmen Portinho, uma militante da luta pelo direito ao voto feminino, conquistou em 1946, um inédito lugar de destaque para uma mulher, ao dirigir o Departamento de Habitação Popular do Distrito Federal e implantar projetos habitacionais com um olhar feminino. Ela entendia habitação como um serviço público e implantou em conjuntos habitacionais, como Pedregulho, equipamentos de uso coletivo que facilitavam o trabalho da mulher, como lavanderia coletiva mecanizada e creche.
Essas iniciativas pioneiras buscaram atenuar a dupla ou tripla jornada das mulheres, mas a diferença no uso e na apropriação da cidade por gênero continua presente. A restrição ao direito à cidade, especialmente de estar no espaço público, atravessou a 2ª onda do movimento feminista e continua forte na cidade do século XXI, apesar dos avanços recentes.
Entrevista com 2.590 mulheres, realizada pelo filme “Sob constante ameaça” (dirigido por Andrea Dip e Guilherme Peters), revelou que 93% das mulheres evita andar após o anoitecer, enquanto que 63% já mudou seu trajeto por temer violência de gênero.
Pesquisa sobre a mobilidade dos estudantes, coordenada pela Profa. Paula Santoro, da FAU-USP, mostrou que “a violência de gênero restringe a mobilidade e a liberdade das mulheres, exigindo escolhas como evitar certos pontos de ônibus, linhas ou horários, pensar na roupa a vestir e onde se sentar dentro do ônibus. As mulheres, quando não se adequam às restrições, não vão a determinados lugares, gerando situações de imobilidade".
O boletim Informes Urbanos, da SMDU, utilizando-se dados da pesquisa OD (2017), revelou que o indice de mobilidade (número médio de viagens) é maior entre os homens (2,23) do entre as mulheres (2.02).
A tradicional divisão sexual ainda predomina: os homens se deslocam mais do que as mulheres para o trabalho (50% contra 39%), enquanto que as mulheres fazem mais viagens por motivo de compras domésticas, de educação, de saude e de transporte de filhos para escolas. Mesmo trabalhando fora, as mulheres cumprem, em média, 8,2 horas a mais em obrigações domésticas do que os homens, segundo o IBGE.
Nessas pesquisas, verifica-se que além do machismo, o racismo estrutural, uma cultura fortemente arraigada, gera enorme desigualdade nas cidades, que afetam primeiramente a mulher preta, que representaram 66% das 4.936 mulheres assassinadas no país em 2017.
Por isso, na atual 3ª onda feminista, além das crescentes denúncias de violências de gênero (assédio, estupro, feminicídio, etc.) e necessária campanha para que os homens dividam paritariamente os trabalhos domésticos, é necessário implementar políticas que observem a questões de gênero, tais como:
- Segurança no espaço público e no transporte coletivo, para garantir o direito da mulher estar na cidade a qualquer hora e em qualquer lugar: ruas e pontos de ônibus iluminados e seguros; fachadas ativas de prédios (os olhos da cidade, como definiu a urbanista Jane Jacobs), evitando longos muros que desertificam as calçadas; ônibus com mais frequência e regularidade nos horários, evitando-se esperas e assedio nos veículos; controle de velocidade e calçadas acessíveis que permitam uma circulação segura dos carrinhos de bebe; regras tarifárias que facilite os deslocamentos múltiplos no transporte coletivo, mais comum entre as mulheres.
- Bairros e conjuntos habitacionais com equipamentos coletivos que complementem as unidades habitacionais e liberem as mulheres da 2ª jornada de trabalho (como Portinho propunha nos anos 1940!): creches e escolas com horário estendido; lavanderias e outros serviços coletivos.
- Criação, em cada macrorregião da cidade, de uma espécie de “Poupa Tempo” de apoio 24 Horas à mulher vítima de violência, evitando a via crucis, hoje existente, para a mulher fazer uma denúncia e obter proteção contra o agressor. No mesmo espaço, seriam reunidos a delegacia da mulher, serviço de saúde especializado que permita fazer o exame de corpo de delito e um juizado para garantir proteção.
Tudo o que melhora a cidade para as mulheres, faz bem para todxs.
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