Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Coronavírus

Enquanto Bolsonaro, no jet ski, diz 'e daí', Bruno e Doria não sabem como enfrentar a pandemia

Governo estadual e prefeitura obedecem diretriz correta, mas cometem erros em série e não conseguem estruturar estratégia

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Cansei de escrever sobre a incompetência, irresponsabilidade e crimes cometidos pelo presidente que 57 milhões de brasileiros elegeram.

Passear de jet ski no lago Paranoá, como um playboy miliciano, no dia em que, oficialmente, 730 pessoas perderam a vida e em que o país atingiu 10,6 mil mortos por Covid-19, é apenas mais um entre tantos desrespeitos cometidos por Bolsonaro. Quem deveria ser o principal articulador do enfrentamento da maior crise sanitária, econômica e social da história recente do país, nem tenta assumir esse papel. “O que posso fazer?”, é tudo o que diz.

Não podemos dizer o mesmo do governador e do prefeito de São Paulo, João Doria e Bruno Covas. Eles entenderam a gravidade, enfrentaram a oposição dos tresloucados bolsonaristas e tomaram as medidas recomendadas pela ciência duas semanas após o primeiro caso de Covid-19 e antes da primeira morte, ocorrida em 17 de março.

Alguns acusam o prefeito de ter estimulado o Carnaval quando o vírus estava chegando na cidade, ignorando o risco. O primeiro caso foi registrado em São Paulo em 26 de fevereiro, um dia após a terça-feira do Carnaval. No fim de semana seguinte, centenas de milhares de pessoas voltaram às ruas em uma extraordinária aglomeração humana, com intenso contato físico.

Mas não havia, naquele momento, uma consciência na sociedade, e mesmo na área médica, da gravidade da situação, embora o estado de emergência tivesse sido decretado pelo governo federal, obedecendo a uma recomendação do Ministério da Saúde, em 4 de fevereiro. Inexistia, entretanto, uma diretriz explícita para evitar aglomerações e seria exagerado dizer que a gestão tenha sido relapsa, embora algumas precauções pudessem ter sido tomadas.

O problema é outro. As administrações do PSDB, embora obedecendo uma diretriz geral correta, vêm cometendo erros em série e não conseguiram estruturar uma estratégia consistente para enfrentar a pandemia da cidade e no estado que são o epicentro da doença no país e no hemisfério sul. O número de mortos no estado, mais de 3.000, acaba de superar o da China.

Ao determinar que a população “fique em casa”, o governo parece desconhecer a diversidade do contexto urbano, social e econômico das nossas cidades. De modo coerente com sua base social e eleitoral, essas gestões conseguiram colocar em prática uma estratégia eficaz para as classes privilegiadas (alta e média alta), onde a pandemia foi contida, mas ineficaz para as áreas de maior vulnerabilidade social, onde ela avança.

A coluna de Demétrio Magnoli, “Carta a um não confinado”, expressa bem como os setores privilegiados conseguem sobreviver bem à recomendação de ficar em casa. “Não ponho o pé na rua há semanas. Leio e aproveito meu pacote da Netflix, experimento receitas, até comecei a pintar. Exercito-me na esteira da sala, Peço tudo por aplicativo... Home-office direto, via zoom. Perdi um naco de renda; meus gastos, porém também diminuíram.”

Parece suportável, né? O problema é que uma parte significativa da população vive em condições muito mais adversas e o confinamento não funciona. Não se trata de um problema de gente “ignorante” (embora uns tantos bolsonaristas devam ser assim qualificados) que quer sabotar o sacrifício dos que ficam em casa, como faz crer o texto de Magnoli. “Faço sacrifícios: sinto falta do Iguatemi, dos meus restaurantes preferidos, de viajar... Você, não confinado, sabota meus sacrifícios, espalhando o vírus. Devo qualificá-lo com um ser antissocial.”

Não é bem assim. Pesquisa com 514 famílias da favela de Heliópolis pelo Observatório De Olho na Quebrada, um projeto da UNAS, mostrou como é difícil ficar em casa. O levantamento revelou que 63% das famílias recebiam até dois salários mínimos e, dessas, 80% perderam alguma renda. Entre quem ganha até um salário mínimo, 93% perderam alguma renda. No total, 68% perderam renda, que já era baixa; 55% das famílias tinham quatro ou mais pessoas na moradia, de área insuficiente.

O relato de Letícia Avelino, moradora da favela, mostra o contraste com o cotidiano relatado por Magnoli. “Tive que voltar a morar com minha mãe pra ajudar ela, ela está desempregada e está saindo pra ver se arruma qualquer ajuda para pagar as contas. Não dá pra ficar! O salário do meu padrasto diminuiu, não chega a R$ 800, pagamos R$ 950 de aluguel, com as contas chega a R$ 1.100. Realmente está muito difícil; para piorar, quando fomos comprar comida tivemos que andar muito, pois os mercados agora estão com preços absurdos”. Internet, Netflix, delivery, nem pensar.

Frente a essa realidade, os governos agem nos efeitos e, às vezes, agravam o problema. Quando o foco da pandemia estava nos bairros de classe média, se propôs o confinamento, mas não se tomou nenhuma iniciativa para impedir ou dificultar sua transmissão para as periferias e outras cidades do estado.

Na mobilidade a ação tem sido desastrosa. A frota de ônibus foi reduzida, mantendo a superlotação costumeira, o que ajudou a levar a Covid-19 para a periferia. O governo levou 50 dias (!) para obrigar o uso de máscara no transporte, e agora nas vias públicas. A prefeitura tenta reduzir os carros em circulação, bloqueando avenidas (medida suspensa em dois dias) e, a partir de hoje, com um rodízio radical. Não se sabe bem porque já que os carros ainda são a maneira mais segura de deslocamento e a medida, decidida de forma improvisada, criará mais demanda para o transporte coletivo. As exceções para os trabalhadores dos serviços essenciais exige um burocrático cadastramento, que ainda não foi feito.

O governo esperou a pandemia se transformar em um genocídio da população em situação de rua, que atingiu o extraordinário índice de 100 para 100 mil (no Brasil, a taxa é cerca de 5 para 100 mil) para tomar uma tímida iniciativa de contratar 800 vagas em hotéis ociosos para abrigar idosos, proposta que apresentei na coluna em 30 de março.

De maneira precipitada, o governador Doria, anunciou em 22 de abril a flexibilidade da quarentena a partir de 11 de maio, sem ter certeza se isso seria possível. Como reflexo direto, o isolamento social caiu significativamente em todo o estado, ficando abaixo de 50%. A curva da pandemia voltou a crescer e o vírus caminha para chegar a todas as cidades do Estado até o final desse mês. Doria teve que recuar e agora, com o crescimento do número de mortos, estuda-se a possibilidade de "lockdown", um isolamento radical. Se ele for adotado sem um debate com a sociedade e com associações locais, poderá gerar grave conflitos.

A fragilização das políticas públicas e a redução do Estado proposto pelos governos do PSDB vêm cobrando seu preço. Os hospitais da Brasilândia e de Parelheiros, assim como várias Upas, iniciados na gestão Haddad, tiveram suas obras paralisadas no início da gestão Doria, que ainda iniciou a privatização do Pacaembu, do Anhembi e do Ginásio do Ibirapuera, agora necessários para a criação dos hospitais de campanha. Não se fala em instalar redes de wi-fi gratuita nas comunidade para criar melhores condições para as pessoas de baixa renda ficarem em casa.

Um enfrentamento consistente da pandemia, em um país com tanta desigualdade, exige dos governos observarem a especificidade de cada assentamento e estruturar ações e estratégias próprias para cada realidade, preferencialmente em parceria com as associações locais. Apenas com mais informação, presença do Estado nas áreas de vulnerabilidade, alternativas de renda para a população e melhor infraestrutura será possível melhorar as condições de isolamento para enfrentar o longo período necessário para controlar a pandemia.

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