Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Trabalhar com fome levando comida nas costas: porque os entregadores farão greve

Entregadores de aplicativos organizam boicote inédito em 1º de julho

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Tomar um vinho com uma pizza que o motoqueiro ou o ciclista do Ifood, Rappi ou Uber Eats entregou após circular por ruas desertas e frias, assistindo um lançamento de Netflix: que delícia!

Sala quentinha para se isolar, sofá confortável, internet ilimitada e um aviso na capa do perfil do Facebook, “fique em casa”. Só uma preocupação: será que o coronavirus entrará em casa junto com a embalagem?

A cena, que faz parte do novo normal da classe média, ficará prejudicada na próxima quarta-feira quando os entregadores por aplicativo prometem fazer uma inédita greve. Os serviços de entrega por aplicativo escancara como, na pandemia, os desiguais ficam ainda mais desiguais.

A precarização do trabalho na “uberização” é um dos cruéis resultados da desregulamentação trabalhista, combinada com as novas tecnologias, sob o predomínio do neoliberalismo. Os entregadores, como micro empreendedores individuais (MEI), precisam adquirir seus instrumentos de trabalho, como o celular e a moto ou bicicleta, pagar despesas como um plano de internet e combustível, e ficar aguardando os aplicativos chamarem para prestar o serviço. Os entregadores podem ser bloqueados e ficar horas sem receber pedidos.

Como são tercearizados, um disfarce das reais relações de trabalho, não têm carteira assinada, garantias trabalhistas, previdência, seguro de vida e de saúde, remuneração assegurada. Os aplicativos não tem responsabilidade com seus colaboradores, sujeitos ao risco permanente nas ruas, agravado na pandemia.

Como mostrei na coluna de 13/8/2019 (Jovens, negros e da periferia, entregadores ciclistas por aplicativo enfrentam a barbárie da modernidade), o entregador ciclista típico de São Paulo mora nas periferias, é homem jovem (50% até 22 anos), negro ou pardo (71%) e tem ensino médio completo (53%). Trabalha os sete dias da semana (57%) e, em média, sua jornada diária é de 9,24 horas, com uma remuneração mensal de R$936,00 (Pesquisa da Aliança Bike).

As condições dos motoqueiros não são melhores. Segundo Paulo Lima, motoboy que passou a prestar serviço para os aplicativos e se tornou uma liderança do movimento, “tem entregador que vai dizer que ganha R$ 300 a R$ 400 por dia, tem uns que ganham R$ 50. Trabalhando de 12h a 14h por dia, eu ganhava R$ 100, mas tinha que tirar daí o plano de celular, a gasolina e a alimentação. Todos os meses botava uns R$ 600 reais de combustível. No final sobrava menos de R$ 1 mil pra viver”. Ele lamenta “trabalhar com fome levando comida nas costas” e diz que é “uma mentira que foi contada pra gente que somos empreendedores”.

O conforto possibilitado pelos serviços delivery, compensando o sacrifício do isolamento para quem pode pagar, provocou um efeito contraditório para os atores envolvidos nesse negócio. Enquanto os aplicativos tiveram um aumento da demanda, do faturamento e do lucro para os acionistas e os restaurante conseguiram manter parcialmente sua receita, os entregadores tiveram redução da remuneração, mesmo trabalhando mais e estando expostos ao vírus.

Publicada na Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, a pesquisa "Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19" ouviu cerca de trezentos entregadores em 29 cidades brasileiras, revelando que suas condições de trabalho se deterioraram ainda mais na pandemia.

Realizada por pesquisadores de universidades federais em parceria com procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), o levantamento mostrou que 58,9% dos entregadores tiveram queda de remuneração apesar de manterem longas jornadas de trabalho: 52% declararam trabalhar os sete dias da semana e 56,4% ter uma jornada de nove ou mais horas por dia.

A crise econômica aprofundada pela pandemia aumentou o número de entregadores à disposição dos aplicativos, provocando uma queda do valor da hora de trabalho e bonificação.

Segundo os pesquisadores, “é possível (...) que as empresas estejam promovendo o rebaixamento do valor da força de trabalho dos que já se encontravam nesta atividade antes da pandemia, prática que seria amparada pelo aumento do contingente de trabalhadores de reserva e adoção de forma nociva de uma política de aumento do número de entregadores”.

Dados da empresa de análise RankMyApp confirmam essa avaliação: entre 20 de fevereiro e 16 de março, as instalações de aplicativos de entrega cresceram 24% na comparação com o mesmo período em 2019. A Rappi afirmou ter registrado uma subida de 30% nas entregas em toda a América Latina nos primeiros meses do ano.

Como resultado do aumento da carga de trabalho dos entregadores, os acidentes com motos também cresceram em São Paulo: foram 39 mortes em março de 2020 contra 21 no mesmo período em 2019, segundo o governo do estado, enquanto caíram as mortes nos outros modais.

Nesse quadro de precarização, os entregadores por aplicativos de alimentação estão sendo convocados para uma inédita greve nacional de 24 horas na próxima quarta-feira, apoiada por associações de 18 estados da federação.

Eles protestam contra o baixo valor pago por quilômetro rodado (que, muitas vezes, é inferior a R$ 1,00), os bloqueios feitos pelas empresas, caso eles se eles neguem a fazer corridas por não compensar financeiramente, e contra o desrespeito à categoria, que corre o risco de contaminação.

Um dos líderes do movimento, que usa o codinome de Mineiro para evitar retaliações, como o bloqueio, diz que a mobilização está sendo feita pelo WhatsApp, com 275 integrantes em cada um dos 18 grupos criados em diferentes estados.

Em São Paulo, a mobilização dos entregadores já gerou um protesto no início no mês, que parou a avenida Paulista com as mochilas de entrega dispostas no asfalto. Como desdobramento, surgiu o Movimento dos Entregadores Antifascistas (MEAF), que ainda é pequeno frente à imensidade do setor.

Mas, como a rede de proteção social está deteriorada, essas insurgências de trabalhadores sem vínculos sindicais, organizados por redes sociais, como WhatsApp, podem crescer. No contexto de forte comoção, essas redes pode gerar uma mobilização parecida com a dos caminhoneiros em 2018. Paulo Lima, um dos líderes do MEAF, afirma que “os entregadores não tem medo de sair às ruas durante a pandemia porque já estão nas ruas correndo todos os riscos”.

Negando a figura de empreendedores, que de fato não são, eles reivindicam direitos básicos, como alimentação durante o expediente, seguro de vida e de saúde e vínculo empregatício com as empresas.

Se o movimento ganhar adesão e força, poderá gerar um processo de transformação importante no novo mundo do trabalho, caracterizado pela “uberização”. Um dos desafios será formular uma relação de trabalho, onde a tecnologia possa ajudar a construir organizações mais cooperativas e justas.

O apoio dos consumidores, deixando de utilizar os aplicativos no dia 1º de julho em apoio aos entregadores que nos dão conforto em meio a pandemia, certamente será muito importante para essa transformação.

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