Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Enfrentar a crise do transporte coletivo requer uma nova fonte de receita e o combate às máfias

Pós-pandemia pode definir novos rumos do setor, bem como transparência dos gastos e comprometimento de empresas à melhoria do serviço

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A pandemia agravou a crise do sistema de transporte coletivo, reduzindo o número de passageiros e, consequentemente, a receita devido ao isolamento social e ao fechamento de serviços, escolas e comércio. Nos meses iniciais da quarentena, a circulação de passageiros em caiu a 30% na maioria das cidades, como São Paulo. Em outras, como Florianópolis, todo o sistema foi paralisado.

Tirar a frota da rua para reduzir as despesas, adotada em todo o país, foi uma medida equivocada, pois manteve a lotação de ônibus, trem e metrô, elevando o risco de contágio. Enquanto durar a pandemia, a tendência será a continuidade da queda de receita, mas reduzir a frota é inadmissível.

Para essa razão, é correta a aprovação pela Câmara dos Deputados, na semana passada, de um projeto de lei que cria uma ajuda emergencial de R$ 4 bilhões para o transporte coletivo. Embora esse auxilio não garanta integralmente o equilíbrio econômico dos contratos, fortemente afetados pela pandemia, e esteja longe de equacionar a crise estrutural do setor, ele é indispensável para evitar a quebra do sistema.

A proposta, que ainda vai passar pelo Senado, prevê o repasse pela União de R$ 1,2 bilhões aos estados e Distrito Federal e R$ 2,8 milhões aos 155 municípios com mais de 200 mil habitantes. O município de São Paulo, por exemplo, receberá R$ 360 milhões, destinado para as empresas de ônibus, e o Estado, R$ 376 milhões, a ser aplicado no Metrô, CPTM e EMTU.

Qualquer transferência de recursos públicos para empresas de ônibus gera preocupação e desconfiança, dado o controle do setor por máfias e a falta de transparência nas suas planilhas.

Por essa razão, é extremamente benvindo o estabelecimento, no corpo dessa lei, de uma conjunto de contrapartidas para o recebimento da ajuda. Espera-se que elas sejam efetivamente cumpridas e que isso seja o embrião de uma política federal que contribua para o financiamento do transporte coletivo e para o controle público e social dos concessionários do serviço.

Para receber os recursos, Estados e municípios precisam assinar um Termo de Adesão se comprometendo, enquanto durar o estado de calamidade pública em razão da Covid-19, a não aumentar as tarifas de transporte coletivo, ao mesmo tempo em que os operadores do transporte coletivo não poderão reduzir o número de trabalhadores em relação aos contratados em 31/7/2020.

Esses condicionantes são meio óbvios, mas a participação da sociedade no debate e a posição firme da Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia garantiu a inclusão de um conjunto de outras exigências que, se aplicadas, poderão ter impacto relevante na operação e transparência do sistema, criando condições para mudanças mais estruturais.

Os recursos não serão transferidos automaticamente para as empresas. Estas deverão transferir ativos para o respectivo ente federativo. No caso de São Paulo, por exemplo, o município poderia receber garagens, elemento essencial para reduzir o poder das atuais concessionárias em futuras licitações.

No Termo de Adesão, os entes federativos deverão se comprometer a rever contratos com as empresas até 31 de dezembro de 2021. Caso isso não seja feito, o ente estará sujeito a penalidades, como a suspensão das transferências voluntárias de recursos pela União para ações nas áreas de transportes ou mobilidade urbana.

A revisão contratual deverá incentivar a adoção de bilhetagem eletrônica e outras melhorias tecnológicas; prever níveis mínimos de qualidade, cujo desrespeito leve à perda do contrato; adotar sistema que permita a auditoria de bilhetagem e o monitoramento dos veículos por satélite (GPS); garantir auditoria independente dos balanços a partir de 2021; e incluir mecanismos que garantam a promoção da transparência, principalmente quanto à tarifa de remuneração da prestação do serviço. Poucos municípios cumprem hoje esses requisitos.

Com exceção dos metrôs, a duração dos contratos, depois de revistos, não poderá ser maior que 15 anos, sem prorrogação. Hoje alguns municípios têm contratos longuíssimos, como Salvador (25 anos), e a prorrogação é corrente.

Além disso, eles deverão adotar instrumentos para priorizar o transporte coletivo, a mobilidade ativa e a melhoria do trânsito, como a implantação e revitalização de faixas de pedestres, ciclovias e sinalização e ser formuladas as diretrizes para substituição gradual de combustíveis fósseis por renováveis (atualmente apenas duas capitais têm esse instrumento). A proibição da concessão de novas gratuidades nas tarifas sem a contraprestação do governo ou a permissão para o operador do serviço obter receitas acessórias, a fim de não aumentar a tarifa dos usuários pagantes, prevista na lei, não parece adequada em um momento em que a pandemia está a exigir a ampliação das gratuidades, por exemplo para os desempregados.

É certo que os avanços pretendidos vão depender da disposição das prefeitura e estados para enfrentar as máfias das empresas de ônibus, que dominam o setor em todo o país, e do governo federal ser exigente no cumprimento dessas obrigações. Não há razões para otimismo, mas esse pode ser o início de uma política federal que condiciona o aporte de recursos a mudanças estruturais no sistema.

O auxílio é emergencial mas a crise do transporte coletivo é estrutural. Em quase todas as cidades brasileiras, a receita do sistema está baseada na tarifa paga pelo usuário, cuja capacidade de pagamento é limitada pela sua baixa renda. A principal exceção é São Paulo, onde o município dispende quase R$ 3 bilhões por ano em subsídios, o que compromete cerca de 5% do seu orçamento. Mais que isso parece difícil, requerendo a contribuição do governo federal.

Vários elementos conjunturais e estruturais contribuem para a redução da receita do sistema, como o receio de utilização do transporte coletivo em meio à pandemia, o avanço do serviço de transporte por aplicativo, cujo custo é reduzido; o desemprego; a queda da renda do trabalho; e o home office, que reduz a necessidade de mobilidade.

Parece inevitável que se crie uma fonte específica, preferencialmente vinculada ao uso do automóvel, para subsidiar o transporte coletivo. Por exemplo, ampliando-se a CIDE, um tributo sobre a venda da gasolina. Sem isso, dificilmente se garantirá o direito à mobilidade e se evitará que o sistema se desorganize e que voltemos ao tempo em que as vans clandestinas inundavam as ruas, sem regularidade, qualidade e conforto.

Mas isso não será aceito pela sociedade enquanto as máfias do ônibus continuarem a prevalecer nas cidades brasileiras.

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